28 dezembro, 2007
125 - Solidão
Poema do Homem Só
Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nehum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.
António Gedeão
27 dezembro, 2007
124 - Olhos de água
Menina em teu peito sinto o Tejo
menina em teus olhos vejo espelhos
se houver alguém que não goste
aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi a amar a madrugada
se houver alguém que não goste
(Pedro Barroso)
123 - H2O
Bendita seja, pois, água divina
(Raul Machado) (Brasil)
22 dezembro, 2007
122 - O MEU RIO CHAMA-SE TEJO
Ó Tejo das asas largas
19 dezembro, 2007
121 - Arre Burrinho
Pela estrada plana, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Toque, toque, toque, como se espaneja,
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Toque, toque, como o burriquito avança!
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
(Guerra Junqueiro)
13 dezembro, 2007
120 - Anoitecer
Anoitecer
A luz desmaia num fulgor de aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, soa mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...
Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bençãos de amor p’ra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente,
Soluça no infinito desta hora...
Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!
E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...
Florbela Espanca, 1923
119 - LIS(BOA) TODOS OS DIAS - Ponte Vasco da Gama
05 dezembro, 2007
118 - O Nevoeiro
Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer
- Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
(Fernando Pessoa)
04 dezembro, 2007
117 - LIS(BOA) todos os dias
A Cidade
A cidade é um chão de palavras pisadas
A palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
A palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco. Um pulmão que respira
Pela palavra água pela palavra brisa.
A cidade é um poro um corpo que respira
Pela palavra sangue pela palavra ira.
A cidade tem ruas de palavras abertas
Como estátuas mandadas apear.
A cidade tem praças de palavras desertas
Como jardins mandados arrancar.
A palavra esperança é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa-chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
Não há rua de sons que a palavra não corra
À procura da sombra duma luz que não há.
(José Carlos Ary dos Santos)
03 dezembro, 2007
116 - LIS(BOA) todos os dias
A CIDADE
Em Lisboa não morro mas espero
O Tejo a água a ponte e o Rossio.
Em Lisboa não morro mas espero
Um pouco menos Tejo menos frio.
Em Lisboa vendendo a minha fruta
De azeite e mel de ódio e de saudade.
É dentro de mim próprio que eu tropeço
Num degrau de ternura da cidade.
Em Lisboa gaivota que navega
No Terreiro do paço por acaso
Eu encontro a dimensão da minha entrega
No aterro, onde me enterro a curto prazo.
Limoeiro, limo do mar da Palha
Palha podre de tédio rio surpresa
Desta Lisboa de água que só falha
Quando do céu azul sobra tristeza.
Lisboa meu amor, minha aventura
Em cada beco só uma saída
Alfama, meu mirante de lonjura
Má fama que a nós todo dás guarida
Mas esta angustia que eu canto
Lisboa, Lisboa, não vem ao caso!...
(José Carlos Ary dos Santos)
115 - As mãos
Nós temos em cada mão
Cinco dedos desiguais:
E outros dois ainda mais.
É vê-los em seu trabalho
Que harmonia e perfeição!
Mexe um ? logo os outros todos
O seu auxílio lhe dão.
E quando o indicador
Mostra aos outros o caminho,
- Vamos – diz o pai de todos,
E lá vai tudo unidinho
Mais fidalgo, o anelar
Quase sempre anda enfeitado.
Mas ai do pobre meiminho,
Se não lhe andasse encostado!
Porém o mais cuidadoso
É o dedo polegar.
Nada os outros fazem, nada,
Que os não vá logo ajudar.
- Mas, porque razão, (pergunta
A Laurinha um dia à mãe)
Sendo todos tão diferentes,
Se dão entre si tão bem?
_ Minha filha, diz-lhe a mãe,
É para nos ensinar
Que uns aos outros, neste mundo,
Nos devemos ajudar.
E que bem feliz seria
Certamente a humanidade
Se por toda a gente fosse
Praticada esta verdade
(Extraído do livro de Leitura da 3ª classe de 1950)
114 - Fim de Tarde
Não! Não me deixes fazer nada,
Não me deixes já ir-me,
Lua
Branca!
Nada mais fazer do que este encanto;
esta quieta viagem clara e alta!
Não, não me deixes
fazer nada;
não me deixes já indo,
Lua
pálida!
O pé enamorado, não mo deixes...
Doba todas as sendas e as estradas!
E estas mãos, minhas mãos transidas,
Ata-mas!
Craveja-mas de estrelas,
Lua
errática!...
(Jorge Amorim)
113 - A LUA
A lua
molha os pés no mar.
Suas mãos
cantam, leves de espuma!
A lua
ascende, alva, do mar.
Suas mãos
cantam, altas de graça!
A lua
exulta, sobre o mar.
A onda
clama: - Excelsa!
Eleita!...
(Jorge Amorim)
112 - Azul
Foto:Shark inho
NADA-AZUL
Nada, é azul! Como os imensos
Céus vazios...
Nada, é azul: antes de tudo,
ou a essência de tudo,
e os anelos.
Nada, é azul: onde florescem
Os anjos e os zénites
Mais perfeitos.
Nada, é azul: como a minha alma
e o nome, perfeitíssimo,
de Deus...
Negras, são as coisas. E as mãos.
Mas nada, é azul.
E o azul
Reina,
Celeste, incontestável!...
(Jorge de Amorim)
02 dezembro, 2007
111 - Lis(boa) Todos os dias
Havia na cidade arranha-céus, colmeias
De abelhas racionais acomodadas em quartel
Vivendo as vidas próprias como alheias
Fabricando o seu fel.
Em cada arranha-céus havia trinta andares,
Em cada andar uns tantos furos,
E, lá por cima, o céu, fora de todos os olhares,
Não chega a ser céu entre esses muros
(José Régio)
110 - Lis(boa) todos os dias
Certas das ruas mais tortas,
Mais sujas, ou mais sombrias,
De qualquer pobre cidade
Tem certas velhas portas,
Janelas com gelosias,
Um ar de cumplicidade…
Qualquer centro superfino
Casas tem bem semelhantes,
Mas de bem mais aparato,
Que atraem bons visitantes
Com seu grande ar clandestino
De vício rico e recato
Ali fuma, bebem, comem,
Dormem rebanhos de estrelas
A que chão caídas hoje!
Quem lá vai…, - prova que é homem:
Prova-o servindo-se de elas;
Serve-se, paga-lhes, foge…
E homens há de toda a sorte,
Doentes de todo o mal,
Tarados de todo o vício,
Que naquele amor venal,
Filho do crime e da morte
Vão buscar gosto ou flágício.
Amor …?! Nem amor nem nada,
O mais que lá vão quaisquer
Buscar a tais labirintos
É carne martirizada
Quem nem quizeram sequer
Se lá não foram famintos.
Pois que amor darão, aquelas
Com quem nos vamos deitar
Mas mal olhamos na rua?
(José Régio)
109 - O Meu rio chama-se TEJO
O Tejo
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
(Alberto Caeiro)
30 novembro, 2007
108 - Rosas Bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha
107 - Outono
Dia Cinzento de Outono
Olho através da vidraça
E vejo as folhas que caiem
E toda a gente que passa.
Baloiçando-se pelos ares,
Tombam as folhas aos pares
Sobre as pedras da calçada
Já foram verdes viçosas,
Deram força à nossa vida
E vida às próprias rosas
Agora, murchas, sem cor
Jazem no chão desprezadas.
Pois mesmo assim já calcadas
Nos transmitem seu amor,
Vão dar alento à terra
P´ra termos vida melhor
Este Outono tão cinzento
Traz-me triste cá por dentro
Também um dia a terra
Que me deu o meu sustento
Me consome e me transforma
No seu próprio alimento.
E esta dança da vida
Num constante movimento
Nunca mais chega ao fim
É isto mesmo que eu penso
Neste dia tão cinzento
(Luís Coelho Albernaz)
17 outubro, 2007
106 - Pôr do Sol
Pôr do Sol
É hora do sol-pôr;
É altura de gritar;
Pássaro, criança, flor,
Eis o que falta: Amar.
É hora do sol poente;
A terra reveste-se de verdade;
A humanidade está doente,
Onde está a felicidade ?
É aqui ao entardecer,
Que me sinto desfalecer …
Os homens são marotos
Brincam, desfazendo os laços quase rotos …
E é nesta hora ao anoitecer
Que eu sinto o quanto à p´ra fazer …
(Fernanda de Sampaio)
16 outubro, 2007
105 - Gaivota
Tu
Tu és uma gaivota,
Que voa com asas quebradas.
És grito oprimido,
Em lábios exitantes.
És sonho de calma,
Em mar revolto.
Tu,
Tu és tudo o que és,
E tudo o que eu gostaria que fosses.
Tu…
És tu, apenas.
(Fernanda de Sampaio)
104 - Mar
Mar
Belo…
Puro…
Calmo…
Violento …
Só tu.
Tu que me fascinas, com a tua grandeza.
Tu que deslumbras, com a tua imensidão.
Tu que me acalmas, com a tua calma.
Tu que me dás Páz, com a tua violência.
Tu que me embriagas, com o teu perfume.
Só tu.
Tu és beleza
És o indefinido definido.
És água fria,
Em contacto com sangue quente.
Só tu.
Fascinas-me !!...
(Fernanda de Sampaio)
23 setembro, 2007
103 - À cata do vento
À cata do vento
O cata-vento
Tem obrigações legais
Deve
Catar o vento
Portanto
Quando o vento passa
Diz-lhe logo atento
Espara aí
Preciso de te catar
Mas o vento
Sempre a passar
Tem outras coisas
Em que pensar
Não está para ser
Catado no ar
E vai passando
Desatento
Ao cata-vento
Sem se importar
Com o tristonho
Catador de vento
Obrigado legalmente
A catar o vento
Então
O cata-vento
Senta-se no telhado
Aporrinhado
E sem vento
Para legalizar
O seu direito
De ser elemento
Respeitado
Pelos elementos
Sentado no telhado
Queixa-se
Isto não é vida!
(Mário Henrique Leiria)
102 - Comparações !
Política
Que simpático rato !
Não tem nada de replente ou tétrico ou nojento.
E – para dizer tudo –
Há homens menos inofensivos.
(Raul de Carvalho)
21 setembro, 2007
101 - À visinha Andaluzia
Ares de Andaluzia
Ó formosa Andaluzia !
Terra de Nossa Senhora !
Ó formosa Andalluzia
Onde o luar parece dia
Onde aé dia a toda a hora !
Ai eu tenho sete musas
Quais délas prefiro eu ?
Ai eu tenho sete musas,
Três d’elas são Andaluzas
Porque as outras são do céu.
.........................
Ó meninas de Sevilha
Sou doente vinde amparar-me
Ó meninas de Sevilha
Deixai-me a vossa mantilha
Que eu não quero constipar-me !
.........................
(António Nobre)
100 - Santo António de Lisboa
Santos Populares
Em dia de Santo António
Uma prece eu fui rezar
Ao meu santo padroeiro
Para um amor encontrar.
Recebi um mangerico
Em noite de São João
Ao saltar uma fogueira
Perdi o meu coração.
E no dia de São Pedro
Dia de sol e calor
Vieram os Santos juntinhos
Consagrar o nosso amor
99 - Ciclo: Lis(boa)todos os dias
À Lisboa das Naus Cheia de glória
Lisboa à beira-mar, cheia de vistas,
Ó Lisboa das meigas Procissões!
Ó Lisboa de Irmãs e de fadistas !
Ó Lisboa dos líricos pregões ...
Lisboa com o Tejo das Conquistas,
Mais os ossos Prováveis de Camões !
Ó Lisboa de mármore, Lisboa !
Quem nunca te viu, não viu coisa boa ...
(António Nobre)
98 - Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus Cheia de glória
Pois tenho pena, amigo, tenho pena;
Levanta-te dáí, meu dorminhoco !
Que falta fazes à Lisboa amena !
Anda ver Portugal ! parece louco ...
Que Pátria grande ! como está pequena !
E tu dormindo sempre aí no «choco»
Ah! como tu, dorme também a Arte ...
Pois vou-me aos toiros, que o comboio parte !
(António Nobre)
20 setembro, 2007
97 - Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus cheia de glória
Ó Lisboa das ruas misteriosas !
Da Triste Feia, de João de Deus,
Beco da India, Rua das Fermosas,
Beco do Fala-Só (os versos meus ...)
E outra rua que eu sei de duas Rosas,
Beco do Imaginário, dos Judeus,
Travessa (julgo eu) das Isabéis,
E outras mais que eu ignoro e vós sabeis.
( António Nobre)
96 - Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus cheia de glória
Meiga Lisboa, mística cidade !
(Ao longe o sonho desse mar sem fim)
Que pena faz morrer na mocidade !
Teus sinos, breve, dobrarão por mim.
Mandai meu corpo em grande velocidade,
Mandai meu corpo p’ra Lisboa, sim ?
Quando eu morrer (porque isto pouco dura)
Meus Irmãos, daí-me ali a sepultura !
(António Nobre)
Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus cheia de glória
Romântica Lisboa de Garrett!
Ó Garrett adorado das mulheres
Hei-de ir deixar-te, em breve, o meu bilhete
À tua linda casa dos Prazeres.
Mas qual seria a melhor hora, às sete,
Garrett, para tu me receberes ?
O teu porteiro disse-me, a sorrir,
Que tu passas os dias a dormir ...
(António Nobre)
94 - Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus cheia de glória
És tu a mesma de que fala a História ?
Eu quero ver-te, aonde é que estás, aonde ?
Não sei quem és, perdi-te de memória.
Dize-me, aonde é que o teu perfil se esconde ?
Ó Lisboa das Naus, cheia de glória.
Ó Lisboa das Crónicas, responde !
E carregadas vinham almadias
Com noz, pimenta e mais especiarias ...
( António Nobre)
93 - Ciclo: Lis(boa) todos os dias
À Lisboa das Naus cheia de Glória
Ó Lisboa vermelha das toiradas !
Nadam no ar amores e alegrias,
Vede os Capinhas, os gentis Espadas,
Cavaleiros, fazendo cortesias ...
Que graça ingénua! farpas enfeitadas !
O Povo, ao Sol, cheirando às maresias !
Vede a alegria que lhes vai nas almas !
Vede a branca Rainha, dando palmas !
( António Nobre)
18 setembro, 2007
92 - Velas
Uma cantiga em vilancete
Não me peças mais canções
Porque a cantar vou sofrendo:
Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo.
Se a minha voz conseguisse
Dissuadir tua tristeza
E a tua boca sorrisse
Mas sóbria que a natureza
Não a posso renovar.
E o brilho vai-se perdendo...
- Sou como as velas do altar
Que dão luz e vão morrendo.
(António Botto)
91 - Avestruz
PALAVRAS DE UM AVESTRUZ TODO GRIS
Arrancam-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.
E, se quisesse,
Podia
Morder-lhes as mãos morenas,
A esses
Que sem piedade
Me roubam as penas que me cobrem;
E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando
Desguarnecido ...
E elas,
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
- Que são minhas !
Passam por mim, desdenhosas,
Em gargalhadas mesquinhas.
Sim; eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
Bem educada.
Mesmo que fosse pequena
E eu te visse pobre ou nua
- Ninguém ama a sua Pátria por ser grande,
Mas sim por ser sua !
(António Botto)
90 - Lição sobre a água
17 setembro, 2007
89 - Evocação
EVOCAÇÃO
Recordo a casa branca à beira-estrada,
Entre flores, vinhedos e livais,
Tendo ao lado, suspensa, uma latada,
Ao fundo uma figueira e milheirais.
Recordo os nossos tempos de criança,
As promessas d’amor que então juramos,
Os beijos inocentes que trocámos,
Tanta ilusão, meu Deus, tanta esperança !...
Tudo passou. O tempo, brutalmente,
Tudo desfez, impiedosamente ...
Como dói recordar que tudo finda !
Ilusões !... Esperanças !... Nada resta.
Da nossa meninice alegre, em festa,
Somente a casa lá se encontra ainda.
(João Velente - in Isto, aquilo e o resto)
88 - Canção da Morte
Canção da Morte
Morte implacável, morte inviolável,
Bendita morte !
Pragas de mágoa, pragas de mágoa...
Olhos de noiva rasos d’água,
Corpos de lua, ao vento norte ...
Morte cantante, morte ofegante
Fecunda morte !
Trevas e gelo, trevas e gelo ...
Quero habitar no sete-estrelo,
Pago, adobrar, meu passaporte...
Morte impasssível, morte invencivel,
Gloriosa morte !
Bocas de velhos, bocas de velhos ...
Calai os santos envangelhos,
Fatal, fatal, é a vossa sorte ...
Morte amorosa, morte piedosa,
Eterna morte !
Almas perdidas, almas vencidas ...
Coragem ! Vá, mãos de suicidas !
A glória e o amor, não nos importe ...
Morte violenta, morte sangrenta,
Heróica morte !
Peitos aflitos, peitos aflitos ...
Mendigos nus e reis proscritos
Não pagam nada p’lo transporte ...
(Duarte Viveiros)
12 setembro, 2007
87 - Amo-te
86 - AMOR DE MÃE
AMOR
Amor essencial
Nascido do meu corpo
E de outro corpo
Que em ansiedademe consumiu
Sempre no recurso
Ao que de melhor houvesse
Para te dar e me dar
Como jamais dei
Porque tu
Foste e serás
A única incondicionalidade da minha vida
Porque ter-te
Foi crescer melhor
Viver maior
Mas foi, também, chorar e rir
Sentir-te pai, em vez de ser eu mãe
Adorar-te, simplesmente, sempre
Porque sim !
(Teresa Robalo)
09 setembro, 2007
85 - O cão
O Cão
O cão que faz ão ão
É bom amigo como os que são
É bom amigo, bom companheiro
É valente, fiel, verdadeiro
E leal serviçal.
Tem bom coração
Que o diga o seu dono
Se ele o tem ou não
Quem vem de fora,
E chega a casa, é o cão
Quem diz primeiro
Todo prazenteiro,
Saltando e rindo
Contente,
E com olhos a brilhar de amor:
- Ora seja bem vindo
O meu senhor.
O cão que faz ão ão
É bom amigo como os que são.
(Afonso Lopes Vieira)
08 setembro, 2007
84 - A ti regresso ... MAR !
«A TI REGRESSO, MAR...»
A ti regresso, mar, ao gosto forte
Do sal que o vento traz à minha boca,
À tus claridade, a esta sorte
Que me foi dada de esquecer a morte
Sabendo embora como a vida é pouca.
A ti regresso, mar, corpo deitado,
Ao teu poder de paz e tempestade,
Ao teu clamor de deus acorrentado,
De terra feminina rodeado,
Prisioneiro da própria liberdade.
A ti regresso, mar, como quem sabe
Dessa tua lição tirar proveito.
E antes ue esta vida se me acabe,
De toda a água que na terra cabe
Em vontade tornada, armado o peito.
(José Saramago)
83 - Receita
RECEITA
Tome-se um poeta não cansado,
Uma nuvem de sonho e uma flor
Três gotas de tristeza, um tom dourado
Uma veia sangrando de pavor.
Quando a massa já ferve e se retorce
Deita-se a luz dum corpo de mulher,
Duma pitada de morte se reforçe,
Que um amos de poeta assim requer.
(José Saramago)
06 setembro, 2007
82 - Alentejo
ALENTEJO
Casas brancas, cadentes, ardentes
Onde o sol esmorece e se reflete
Em catadupas de luz.
O ar é fogo na tarde calma
É o marasmo do tempo
A vida se reclina e se declina
Lentamente
Ao ritmo de eternidade
O céu é límpido, sereno, imaculado,
Apenas salpicado de onde em onde
Pela sombra de uma árvore
Chora a saudade a campina
Que soluça desgarrada
Sequosa, ansiosa
Pela benção de uma fonte
E na imensidão deste mar plangente
Avança e alastra dolente
A solidão do monte
(Amélia Rei)
81 - Nem tudo o que luz....
Quadras soltas
A vida é uma ribeira;
Caí nela, infelizmente ...
Hoje vou, queira ou não queira,
Aos trambolhões, na corrente.
(António Aleixo)
03 setembro, 2007
80 - Pobreza
HUMILHAÇÃO
Ser pobre não é vergonha
Mas parece humilhação !
Pois quando digo que sou pobre
Ninguém me quer dar a mão.
Mas se é vergonha ser pobre,
O que querem afinal ?
Porque deixaram haver
Tanto pobre em Portugal ?
(Maria Alice da Luz)
Poeta popular
79 - Outono
Toada da folha e do vento
Baila o vento à gargalhada
Não se cansa de bailar
Com a folha torturada
Cor do sol a desmaiar !
Triste folha que foi verde
Que foi Esp’rança do pomar !
Passam vales, passam montes
Sob o sol indiferente !
Pasmam rios ! Dormem fontes !
Ninguém ouve ... ninguém sente !
Ai, dos fracos coitadinhos ...
Que não têm voz de gente !
Baila a folha! Chora a folha !
Baila o vento ! Ri o vento !
Passa o mundo, mas não olha ...
Só tem olhospara dentro !
Se há qum nasce p’ra ser folha
Tem de andar nas mãos do vento !
Baila o vento no convento !
Dão trindades no lugar !
“Um momento senhor vento,
Só o tempo de rezar ! ...”
Segue o vento gargalhando !
Baila a folha a soluçar !
“Piedade senhor vento ...
Onde é que me vai levar ? !”
Chora a folha, num lamento,
Ri o vento sem parar.
E atirou-se sobre a lama
Salpicada de luar !
Só depois que a viu na lama,
Encharcada de luar
Foi em busca doutra folha,
Doutra escrava ... p’ra bailar !
Foi em busca doutra folha,
Doutra escrava p’ra bailar !
(Vilar da Costa)
78 - Pedra da calçada
A PEDRA DA CALÇADA
Arrancada, despresada,
Uma pedra da calçada,
Posta ao canto duma rua,
Lembrou o mundo ruim
E pôs-se a contar assim
Os transes da vida sua:
“Eu sou de serras distantes,
Onde as fontes, sussurantes,
P’la noite velha adormecem;
E vim p’ra a cidade enorme,
Onde nem a noite dorme
E os homens não se conhecem !
Sobre mim, passaram nobres;
Sobre mim, dormiram pobres;
Vi risos maus; dor’s sublimes,
Salpicaram-me, no entanto,
Com tristes gotas de pranto
E negro sangue de crimes.
Eu vi riquezas mentidas,
Eu vi misérias ‘scondidas,
Vi honra e devassidão;
Guardei-me dos homens falsos,
Debaixo dos pés descalços
Dos pobrezinhos sem pão”.
E aquela pedra sombria,
Muito negra, muito fria
Com um desgosto profundo,
Deixou-se ficar alí;
Não por vergonha de si,
Mas por vergonha do Mundo !
(J. Frederico de Brito)
01 setembro, 2007
77 - 25 de Abril SEMPRE
As Portas que Abril Abriu
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
(José Carlos Ary dos Santos)
76 - Ilha
ILHA
Deitada és uma ilha e raramente
Surgem ilhas no mar tão alongadas
Com tão prometedoras enseadas
Um só bosque no meio florescentes
Promontórios a pique e de repente
Na luz de duas gêmeas madrugadas
O fulgor das colinas acordadas
O pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha que percorro
Descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
Ou se te mostro só qu me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
Da vida que me dás todos os dias
(David Mourão Ferreira)