18 dezembro, 2008

261 - Feira de vaidades














































Foto: Charquinho

Eu, etiqueta

"Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de baptismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camisola, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu ténis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem — anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registadas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
Da sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou — vê lá — anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objecto pulsante mas objecto
que se oferece como signo de outros
objectos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome rectifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."



Carlos Drummond de Andrade

260 - Natal













































Foto: Charquinho

NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!

E o Menino nascia a bordo de um navio

Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira

14 dezembro, 2008

259 - Lis(boa) todos os dias

Foto: Charquinho

A Ponte (o rio) Entre as Cidades

Rio de duas cidades
dividido entre tristezas
uma ponte assim as une
não de aço, de pobrezas
Álvaro Pacheco

10 dezembro, 2008

258 - Mulher com M Grande

Foto: Sharkinho

Avó e Neto

Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?

Por que é branco o seu cabelo?
Por que se apóia a um bordão?
Vovó, porque, como o gelo,
É tão fria a sua mão?

Por que é tão triste o seu rosto?
Tão trêmula a sua voz?
Vovó, qual é seu desgosto?
Por que não ri como nós?

Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer...
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!

Os anos, que vão passando,
Vão nos matando sem dó:
Só tu consegues, falando,
Dar-me alegria, tu só!

O teu sorriso, criança,
Cai sobre os martírios meus,
Como um clarão de esperança,
Como uma benção de Deus!

Olavo Bilac

03 dezembro, 2008

257 - A rosa do meu jardim

Foto: Sharquinha

Poema da Rosa

Há uma rosa linda
No meio do meu jardim
Dessa rosa cuido eu
Quem cuidará de mim?

De manhã desabrochou
À tarde foi a escolhida
Pra de noite ser levada
De presente à minha amiga

Feliz de quem possui
Uma rosa em seu jardim
Minha amiga com certeza
Pensa agora só em mim.

Quando sopra o vento frio
E o Inverno gela o jardim.
Eu tenho calor em casa
E fico quentinho assim.

Feliz de quem tem um tecto
Para ajudar sua amiga
Fugir do vento ruim
Que deixa gelado o jardim
Berthold Brecht

02 dezembro, 2008

256 - Golfinhos em terra

Foto: Filha de Tubarão

AMIGO GOLFINHO

Tenho um golfinho amigo,
Ali para as águas do Sado
Ele andava perdido,
E por alguém foi encontrado
Por Bisnau foi baptizado
E muito feliz ficou
Por uns amigos ter encontrado,
Que por eles se apaixonou.

Ele é muito brincalhão,
Porque muitas partidas faz
Vocês acreditem ou não,
Do que este amiguinho é capaz
Então, não é que o Pescador,
Que ia na sua traineira
Naquele mar de primor,
Foi levado para a brincadeira.

Por este golfinho descarado,
Que a traineira fez balançar
Deixando o pescador todo molhado,
Que com ele não se foi zangar.

Ó golfinho brincalhão,
Diz o pescador, ao Bisnau
Ando com as redes neste mar chão,
A ver se apanho o carapau
E tu me deixas todo molhado,
neste mar tão salgado.

O golfinho, para as pazes fazer
Chamou os carapaus com rigor
Para uma bela pesca oferecer,
Ao seu querido amigo pescador.

Lá foram os dois muito contentes
Pelo Sado, devagar
Levando como presente,
Uma pesca de encantar
Bisnau e o Pescador,
Que no Sado muitos os vejam
Não dêem aos golfinhos dor,
que eles a nós nos beijam

30 novembro, 2008

255 - Amor é Amor

Foto: Filha de Tubarão

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo
Amor é estado de graça.
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionário
se a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade

28 novembro, 2008

254 - Montanhas e valados

Foto: Charquinho

Bucólica

Montanhas e valados do Senhor
Aonde nascem peregrinas flores
E onde se debuxam várias cores
Num concerto de luz fascinador

Em vós tecem enredos mil amores
Os poetas ingenuos e os pastores
Quem em suas alegrias suas dores
Hão-de sempre a beleza eterna pôr

Almas ingenuas melodioamente
elevam maravilhas amorosas
Nas palavras que formam seus cantares

E todo o poeta que ali esteve sente
Que os cânticos de amor são como rosas
Eternamente perfumando os ares...
Jayme Azancot

253 - Nem Tarde, nem Noite

Foto: Charquinho

Metade

Chega a noite. E o dia não passou
Inda todo p'ra lá, compreendido
Só metade das coisas faz sentido
E o resto é pouco, ou muito, ou não chegou.

O cerebro é pequeno, - ou desmedido,
Porque nada está lá como eu estou,
Há sempre alguma coisa que falhou
E é possivel até eu ter falido

A maior posse não existe.Pois
Não há desejo que não quebre em dois
Meu sonho que morre insatisfeito

E sendo isto uma volta sincopada
Sem mais outra certesa, sem mais nada
Pode-se lá saber o que é perfeito
Luiz Moita

25 novembro, 2008

252 - Trabalhadores

Foto: Charquinho

Os anõezinhos

Na padaria não faltava o pão,
embora o padeiro fosse um mandrião,
porque o padeiro e o moço ressonavam,
enquanto os anõezinhos trabalhavam:

uns carregavam sacos de farinha,
outros faziam pãozinho na cozinha.

Ricardo Alberty,

251 - Docinho gostooso

Foto: Charquinho

Bombom Bom

No recreio, eu ganhei um bombom.
Seu recheio era de amora.
Tinha um gosto tão bom,
que eu comeria a toda hora.

Seu gosto era delicioso,
parecia um manjar dos deuses.
Era envolvido num papel maravilhoso,
que eu admirei diversas vezes.

— Você me dá um bombom?
Só com um não vou me contentar,
pois o seu gosto é tão bom
e outro eu quero ganhar.

Bombom doce, doce bombom,
adoce a minha vida.
Traga-lhe tudo de bom,
torne-a doce de ser vivida.
Josete Maria Vichineski

250 - Noite de Amor


Noche de amor insomne
Noche arriba
los dos con luna llena,
yo me puse a llorar y tú reías.
Tu desdén era un dios, las penas mías
momentos y palomas en cadenas.
Noche abajo
los dos. Cristal de pena,
llorabas tú por hondas lejanías
sobre tu débil corazón de arena.
La aurora
nos unió sobre la cama,
las bocas puestas sobre el chorro helado
de una sangre sin fin que se derrama.
Y el sol
entró por el balcón cerrado
y el coral de la vida abrió su rama
mi corazón amortajado.
Garcia Lorca

23 novembro, 2008

249 - Ruinas

Foto: Charquinho

Ruinas

Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
Lembrança de teu rosto.”
de todo a noite,
Pelo espaço arrastando o manto escuro
Que a loura Vésper nos seus ombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas correram. No outro dia,
Quuando as vermelhas rosas do oriente
Ao já próximo sol a estrada ornavam
Das ruínas saíam lentamente
Duas pálidas sombras:

O Poeta da saudade
Machado de Assis, in 'Falenas'

21 novembro, 2008

248 - Madrugada

Foto: Charquinho





















No calor da madrugada

Quando chegar a madrugada
E o meu corpo em ti buscar o amor
Vou desenhar-me na tua pele
E antes que a manhã se revele
Sorverei o teu sabor
Seremos além de amantes
Comandados comandantes
A caça e o caçador

Quando chegar a madrugada
Vou salpicar de estrelas
Teu suor sobre o lençol
E em suave melodia

No encontro da noite com o dia
Serei a lua
E tu, o sol

09 novembro, 2008

247 - Linguagem poética

Foto: Charquinho

Passa-lhe ao lado a cidade

Passa-lhe ao lado a cidade
no contexto de uma realidade
que é só sua e de mais ninguém.

Não se sente mal
nem se sente bem,
não chora
mas não lhe dá para rir,
também dispensou
esse luxo que é sentir.

Abdicou da emoção
quando se percebeu incapaz
de lidar com as memórias
de tempos atrás.

E aprendeu que no futuro
de pouco lhe iriam valer,
essas lembranças
que fazem doer.

Cansou-se de enfrentar a reacção
desesperada
de cada pessoa amada
que tentava em vão
contrariar-lhe a decadência
e que depois ele sentia
como uma indecência
a sua presença perniciosa
nas vidas que lhe competia partilhar.

Um dia decidiu…

Quanto tempo não sabia,
que lhe restava e o que jazia
na masmorra fechada
num canto da sua mente anestesiada
à prova de emoções,
a alma afogada em alucinações…

Acreditava-se
com as rédeas da sua vida na mão,
independente,
mais livre
enquanto indigente
do que na pele controlada
por um papel a cumprir
numa vida tramada
para todos os que se deixavam arrastar
por uma maleita qualquer
que culmina no ensandecer…

Às vezes apetece-lhe sorrir,
mas descobre que é engano
quando o calor metropolitano
o lembra do frio interior
e é então que desliga o olhar,
pousado sem brilho
num ponto fixo da cidade
que lhe passa ao lado
enquanto rumina
em silêncio
a melhor solução
para a próxima refeição,
desatinado
por já nem conseguir lembrar-se
de como desenrascou a anterior.
"Charquinho"

07 novembro, 2008

246 - Canção antiga

Foto: Charquinho

O Meu cavalo

Montei meu cavalo
Que é meu companheiro
Em cada jornada
Que tinha galgado

em passa ligeiro
dez léguas de estrada.

Mas vamos ao resto
que às vezes casos
que dá alegria contá-los
passou por nós lesto
um grande automóvel
de trinta cavalos.

E o meu cavalinho
um pouco espantado
parou um instante
sem ver os cavalos
que iriam puxando
um carro tão lindo.

Mas ai numa curva
de estrada comprida
ao pé dum silvado
aquele automóvel
de tanta corrida
ficou empanado

E o meu cavalinho
pinchava imponente
de cauda aos estalos
a rir-se contente
daquele automóvel
de trinta cavalos!

06 novembro, 2008

245 - Pública ou Privada ?

Foto: Charquinho - julho 13, 2005

A Coisa Pública e a Privada

Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.
Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?
O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?
— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

Affonso Romano de Sant'Anna

244 - Mudanças...

Foto: Charquinho

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
Bertold Brecht

243 - Curvas e contracurvas

Foto: Charquinho
Pinta-me a curva

Pinta-me a curva destes céus ... Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.

Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraíba, em torvelins de espuma.

Pinta; mas vê de que maneira pintas ...
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrínio das alegres tintas:

— Tristeza sir-gular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos dágua ...
Olavo Bilac

05 novembro, 2008

242 - A Ponte (amor de betão)

Foto: Shark

Talvez sonhasse, quando a vi

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a...Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando ...
Olavo Bilac

241 - Motociclista

Foto: Charquinho

MOTOCANDO
Loucura ou aventura,
pense lá o que quizer ...
Vão pela estrada, de moto,
o marido e a mulher.

Sensação de liberdade,
os pensamentos voando...
Fazem curvas, cortam retas,
seus destinos vão buscando.

À frente, se descortinam
céu e terra aos olhos seus,
mostrando toda beleza
da imensa obra de Deus.

A natureza desnuda:
campos, vales, serras, matas.
E o sol, dourando a folhagem,
dá luz e vida á paisagem.

O sol também nos aquece
do forte vento que vem
e esse contato mono
e de frescor nos faz bem.

E lá vão os dois rodando,
pensativos e silenciosos,
querendo reter na vida
momentos tão preciosos.

Tudo passa.... a paisagem
Que encantou e fica para trás.
Assim a vida é viagem:
o que foi não volta mais.
Maria Célia Cavalcanti Gonçalves

240 - Torre sineira

Foto: Charquinho

O Sino da minha Aldeia

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa

239 - Viagens

Foto: Charquinho

Carne dos meus pensamentos

Não conhecer teu corpo
mas sabê-lo possível
passível a viagens
que não as minhas.
Como te dizer por exemplo:
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
e a comida que acaso desejares
e algum poema que ilumine os ares...
se me olhas
simplesmente desinteressada
e num gesto muito teu
tiras da sacola Peg Pag
uma maçã dourada
que mordes
de estalo
e que deixa
entre os lábios e os dentes
um espaço de desejo
preenchido vorazmente
pela fruta
não pelo meu beijo?
Neide Archanjo

238 - Máquina do Tempo

Foto: Charquinho

Máquina do Tempo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
António Gedeão

18 outubro, 2008

237 - O Morto

Foto: Charquinho

O Morto

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
Mario Quintana

12 outubro, 2008

236 - As Armas e os Barões asinalados

Foto: Charquinho
Os Lusíadas
Canto I
As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana
E em perigos e gurras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

Canto VI
28/29
Que descuido foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos, fracos e atrevidos?
...............................................................
Vistes e ainda vemos cada dia
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos
Venham deuses a ser, e nós humanos.

Canto IV
104
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração!
Mísera sorte! Estranha condição!
(Luiz Vaz de Camões)

07 outubro, 2008

235 - Nuvens de Outono

Foto: Charquinho

Outono

Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome,
somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente
e tão avara
de alegria.
Eugénio de Andrade

22 setembro, 2008

234 - Mosca Morta

Foto: Charquinho

Poema para uma mosca morta

Vendo a mosca morta assim
Estatelada
Morta mesmo
Sobre a fórmica branca
Limpinha
Patas pra cima
Olhos estáticos
Asinhas coladas ao chão
Pobrezinha
Me vem até certa comoção

Mas isso vendo-lhe assim,
Tão pequenina
Mas imaculada
Sem destroço
Nem nada
As duas asinhas meio tortas
Mas ainda coladas ao corpo
Caso contrário,
Sentiria só nojo

Percebo, assim
Que a cota
Do que me toca
É como você,
Pequenina

Morta assim
Inteirinha
Sem asa pra um lado
Nem sangue espalhado
Consegues pousar leve
Sobre a minha consciência
E se instalar
Nessa superfície branca
E insípida

Constato
Não sem horror,
Mas com certa alegria,
Que o meu estômago
E simpatia
Só respondem a uma certa quantia
De carne e de
Ou parentesco
Na escala evolutiva

Um bom exemplo,
A foto do elefante morto
Congelado, nas geleiras do Himalaia
Mesmo encontrado inteiro
Imaculado
Faltando na verdade somente a ponta do rabo
Isso sim
Me ojeriza
E tomba
Sobre a minha espinha

19 setembro, 2008

233 - Aos Bombeiros

Foto: Charquinho

BOMBEIROS

Altas horas da madrugada
A sirene faz-se ouvir
Ela grita alarmada
Para o bombeiro acudir
Para o quartel se apressa
Sem saber o seu destino
De momento, nada lhe interessa
O fogo é o seu caminho
Chegado ao incêndio
O reconhecimento ele faz
Mandando avançar
Os meios que acha eficaz
Sozinho no denso arvoredo
Por entre o fumo e as chamas
Ele sente medo de não voltar
Para junto daqueles que ama
O fogo com a sua astúcia
Vai cercando o bombeiro
Que dentro de uma angústia
Quer fugir daquele braseiro
Sentindo a morte a aproximar
Ele pensa na sua família
Que jamais poderá amar
A partir daquele dia
Assim morreu o bombeiro
Na sua abnegação
Valente e altaneiro
Soube cumprir a sua missão
Desse homem valente
Apenas ficou a recordação
Mas só sua família sente
Grande mágoa no coração

Tu és bombeiro altaneiro
Homem de fé e valor
Não o és por dinheiro
Mas apenas por amor

232 - Quase com vida

Foto: Charquinho

Pedra Lioz

Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Catanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na lentidão dos calcários.
Ali, no esconso recanto,
só o túmulo, e mais nada,
suspenso no roxo pranto
de uma fresta geminada.
Mas no silêncio da nave,
como um cinzel que batuca,
soa sempre um truca…truca…
lento, pausado, suave,
truca, truca, truca, truca,
sob a abóbada romântica,
como um cinzel que batuca
numa insistência satânica:
truca, truca, truca, truca,
truca, truca, truca, truca.
Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
ambos vivos ali estão,
truca, truca, truca, truca,
vestidos de sunobeco
e acocorados no chão,
truca, truca, truca, truca.
No friso, largo de um palmo,
que dá volta a toda a arca,
um cristo, de gesto calmo,
assiste ao chegar da barca.
Homens de vária feição,
barrigudos e contentes,
mostram, no riso dos dentes
o gozo da salvação.
Anjinhos de longas vestes,
e cabelo aos caracóis,
tocam pífaro celestes,
entre cometas e sóis.
Mulheres e homens, sem paz,
esgaseados de remorsos,
desistem de fazer esforços,
entregam-se a Satanás.
Fixando a pedra, mirando-a,
quanto mais o olhar se educa,
mais se estende o truca…truca…
que enche a nave, transbordando-a,
truca, truca, truca, truca
truca, truca, truca, truca.
No desmedido caixão,
grande sonhor ali jaz.
Pupilo de Satanás?
Alma pura, de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.

(António Gedeão)

231 - Arco-da-Velha

Foto: Charquinho

Arco-Iris

Choveu tanto esta tarde
Que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
Molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda.
Mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda,
Fazendo roda como os tangarás:

"Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol."

De repente, no céu desfraldado em bandeira,
Quase ao alcance da nossa mão,
O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira
A cauda em sete cores, de pavão.
Olegário Maria
(Poeta Brazileiro)

03 setembro, 2008

230 - Poemas à Lua

Fotos: Charquinho

Ó Lua que vas tã alta,
redonda como o...
esses tés olhos menina

parecem rodas de um carro

Ó lua que vas tã alta
Redonda como um tamanco
Ó Maria traz cá as escadas
Q’eu nã lhe chego cum banco


Além naquele monti
Mandê fazer um castelo
P´ra depois dezer à Lua
Eu daqui te comtempélo


Do floclore português

01 setembro, 2008

229 - O Tejo, sempre

Foto: Charquinho

"Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos"

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa -
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que
Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

Adolfo Casais Monteiro

27 agosto, 2008

228 - Estrada

Foto: Charquinho

Estrada

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.
E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.
Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.
— Ó Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te haverá de acudir?
Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.
— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti
Mas já noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Aí que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Aí como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!
Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…
(Manuel da Fonseca)

227 - Sem segredos

Foto: Charquinho

O Segredo do Mar

A “Flor do Mar” avançando
Navegava, navegava,
Lá para onde se via
O vulto que ela buscava.

Era tão grande, tão grande
Que a vista toda tapava.

E Bartolomeu erguido
Aos marinheiros bradava
Que ninguém tivesse medo
Do gigante que ali estava.

E mais perto agora estão
Do que procurando vão!

Bartolomeu que viu?
Que descobriu o valente?
- Que o gigante era um penedo
que tinha forma de gente?

Que era dantes o mar? Um quarto escuro
Onde os meninos tinham medo de ir.
Agora o mar é livre e é seguro
E foi um português que o foi abrir.

Afonso Lopes Vieira, Obra Poética (séc. XX)

26 agosto, 2008

226 - Meu Alentejo querido

Foto: Charquinho

Meu Alentejo fadista

Meu Alentejo fadista
De beleza inquietante
Para quem te sabe ver...
O teu perfil intimista
Tem a côr insinuante
Da mais bonita mulher

O teu sol acolhedor
Estrela de luz e côr
Tem sempre um calor real
E quando a noite acontece
O teu luar nos parece
Um poema natural
Meu Alentejo, meu berço
Eu apenas me conheço
Quando te canto num fado...
Ao compasso da saudade
Eu quero que a tua idade
Seja um poema encantado.


(José Fernandes Castro)

225 - O Parque Infantil

Foto: Charquinho

Memória da infância

É a memória a saborear o tempo
como se eu estivesse instalado num baloiço
e sentisse o chão da minha infância deslizar pelo corpo
a imagem que eu tenho para o tempo
é uma repetição do meu pensamento
um movimento de palavras que em nada se fixa
um regresso sempre a um ponto fixo
o nó para além das pontas que o realizam

se quero falar do tempo
tenho esta imagem do baloiço a partir da minha memória
consciência condenada a uma realização temporal

e o que eu compreendo é um rasto de viagem primitiva
o corpo que filma o próprio movimento esbate-se contra o solo
o baloiço é o desenho da minha existência.

25 agosto, 2008

224 - Bolas de sabão

Foto: Charquinho

As Bolas de Sabão


As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
(Alberto Caeiro)

223 - Arte Portuguesa: Azulejos

Foto: Charquinho

Azulejo

Azulejos da cidade
numa parede ou num banco,
são ladrilhos da saudade
vestida de azul e branco
Bocados da minha vida
todos vidrados de mágoa,
azulejos, despedida
dos meus olhos, rasos de água.
À flor dum azulejo, uma menina;
do outro, um cão que ladra e um pastor.
Ai, moldura pequenina,
que és a banda desenhada
nas paredes do amor.
Azulejos desbotados
por quanto viram chorar.
Azulejos tão consados
por quantos viram passar.
Podem dizer-vos que não,
podem querer-vos maltratar:
de dentro do coração
ninguém vos pode arrancar.
À flor dum azulejo, um passarinho,
um cravo e um cavalo de brincar;
um coração com um espinho,
uma flor de azevinho
e uma cor azul luar.
À flor do azulejo, a cor do Tejo
e um barco antigo, ainda por largar.
Distância que já não vejo,
e enche Lisboa de infância,
e enche Lisboa de mar.
(Ary dos Santos)

22 agosto, 2008

222 - Rosas

Foto: Charquinho

As rosas

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas e eterna, porque
Nascem nascido já o Sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos
(Ricardo Reis)

221 - A cor das borboletas

Foto: Sharkinho

Passa uma borboleta

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
(Alberto Caeiro)

220 - Regressar ao Paraíso

Foto: Sharkinho

Ser La Serpiente

Si pudiera regresar al Edén
A pesar de los ángeles y sus espadas de fuego
Y se me diera a escoger qué personaje encarnar en la tragedia,
Quisiera ser la serpiente.
Conocedora de los secretos de la fruta prohibida,

Lasciva en su mansa postura de espectadora del pecado,
Prefiero ser la serpiente,
Que amó a Eva en su prístina belleza,
A Adán en su tonta inocencia
Y probó a Aquel que no nos atrevemos a nombrar,
Que todos somos falibles,
Cuando hizo al hombre poseer el objeto de su deseo
Fundido a la medida de sus más umbrosas fantasías.
Quiero, sí, ser la sabia serpiente,

Porque sin ella no habría historia que contar,
Más allá de un jardín abúlico,
Semejante a una pecera de peces aburridos.
Sería, definitivamente, ese monstruo antiguo,
Retador del Divino Alquimista,
Que vio partir, cabizbajos, a los amantes,
Y a Dios marchar a su exilio, allá arriba,
Tratando de olvidar los labios de su Eva.
Porque, no sé si lo recuerdan- a
veces estos detalles pasan inadvertidos -:
Ella quedó, sonriente,
Viéndolos retirarse de la escena,
Eternamente invasora,
Propietaria definitiva,
Del Jardín que todos añoramos.
Marié Rojas Tamay

20 agosto, 2008

219 - Lisboa de madrugada

Foto: Sharkinho


Madrugada em Alfama



Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada,
mas ela, de tão estouvada
nem sabe como se chama.
Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama
e que o sol primeiro inflama
quando acorda à madrugada.
Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama.
Nem mesmo na Madragoa
ninguém compete com ela,
que do alto da janela
tão cedo beija Lisboa.
E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa:
Madragoa não perdoa
que madruguem mais do que ela.
E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa.
Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada;
são mastros de luz doirada
os ferros da sua cama.
E a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa,
é como a estátua de proa
que anuncia a caravela,
a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa.

David Mourão-Ferreira

218 - O sorriso das crianças

Foto: Charquinho

O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosada minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
Pablo Neruda

217 - Para além de tudo

Foto: Shark

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros, na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos! vamos conjugar o verbo fundamental
essencial, o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.
Carlos Drummond de Andrade

216 - Rio Sado

Foto: Sharkinho

O rio

Seja o tempo qual for,
é sempre novo,
nas margens livres
e entre os duros cais.
Na mata ou avançando pelas ruas,
tem boiantes pudores fluviais.
Nada mais de uma vez ele reflete,
deixando a coisa refletida atrás.
Tange a si mesmo o rio, pois de suas
águas nenhuma gota se repete.
Mauro Mota

215 - Companheiro Gato

Foto:Sharkinho

Companheiro

Quero deixar-me longe.
Separar-mede mim.
Abandonar-me.
Ser-me estranho.
Parto, mas, onde chego,
me reencontro.
Despeço-me de novo
e me acompanho.
(Mauro Mota)

214 - Aquela casa

Foto: Sharkinho

A casa

Debruço-me de fora
onde havia a janela.
Nuvem ou casa extinta?
Lá estou como eu era.
Que pássaro imigrante
Pousa na cumeeira?
Que neblina umedece
as paredes aéreas?
Quem me chama ou me leva
quando o espaço transponho?
Só verde das heras
sobre as vozes e o sonho.
Mauro Mota