23 maio, 2012

361 - A Dança

Foto: Shark

A DANÇA

Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.


Pablo Neruda

360 - Bençãos

Foto: Shark

Bênçãos

Bem hajas, ó luz do sol
Dos órfãos gasalho e manto,
Imenso eterno farol
Deste mar largo de pranto

Bem hajas, água da fonte,
Que não desprezas ninguém:
Bem-haja a urze do monte,
Que é lenha de quem não tem.

Bem hajam rios e relvas,
Paraíso dos pastores!
Bem hajam aves das selvas,
Musica dos lavradores!

Bem haja o cheiro da flor
Que alegra o lidar campestre;
E o regalo do pastor,
A negra amora silvestre!

Bem haja o repouso à sexta
Do lavrador e da enxada:
E a madressilva modesta
Que espreita à beira da estrada!

Triste de quem der um ai
Sem achar eco em ninguém!
Felizes os que tem pai,
Mimosos os que tem mãe!
Tomás Ribeiro





359 - Água corrente

Foto: Shark

ÁGUA CORRENTE

Água clara da corrente
Que vais tu a lamentar?
São lembranças da nascente
Ou pressa de ir ter ao mar?

Correndo, correndo,
Sem nunca parar,
Em busca do rio,
Caminho do mar,
De noite e de dia,
A água a correr,
ao rio irá dar,
Ao mar há-de ir ter.

Que dizes tu ribeirinho?
Que dizes, que eu não te entendo?
Não te cansas no caminho,
A toda a hora correndo?

Lava roupa à lavadeira,
Põe a azenha a trabalhar,
Não vás assim de carreira,
Tens tempo de ver o mar…

In Livro de leitura da 4ª. classe edição 1931

22 maio, 2012

358 - Pregões de Lisboa


Foto: Shark

Pregões de Lisboa


Manhã cedo. O sol dourado
A tudo vai dando cor:
Há já vida na cidade
Já nela se ouve rumor

Vendedores ambulantes
Começam a aparecer
Vamos lá ver, ó fregueses
O que trazem p’ra vender

Oito horas. À nossa porta
Passa agora a tia Chica
Com sua voz compassada
Apregoa: «Fava rica»

Lá vem também a peixeira
Com seu trajo pitoresco,
Dizendo: «Oh! Viva da Costa»
Ou então «Carapau fresco»

E agora, de toda a parte
Se ouve gente que apregoa,
Gritando: «Quem quer laranja,
Quem compra laranja boa?...

«Merca o cabaz de morangos…»
«Século. Noticias. Voz…»
Oh! Boa amora da horta…»
«Quem quer ameijoas p’ra arroz?»

«Erre, erre, mexilhão…»
«Oh! Pescadinha marmota…»
«Compra o raminho de flores…»
«Oh! Figos de capa rota…»

E com a lata no braço
Fresquinha qual fresco arroio,
Passa linda vendedeira,
Cantando: Oh! Queijo saloio…»

E tudo lá vão deixando,
P’la cidade, os vendedores.
Mas, para ganhar a vida
Que canseiras, que suores!

“Pregões de Lisboa”, autor anónimo in Livro de leitura da 3ª classe 1950/51



357 - Noite Fechada

Foto: Shark


NOITE FECHADA

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho.

O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E, ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando

E tu que não serás somente minha,
Às carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar!


Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'
Tema(s): Amor Noite Ler outros poemas de Cesário Verde //

21 maio, 2012

356 - Sonho

Foto: Shark

Sonho

Sonho-te amor na madrugada:
O meu nome murmuras com doçura
A tua boca em minha boca desesperada
Teu corpo em meu corpo uma loucura

Segredas-me o amor do tempo antigo
Em silêncio guardo os meus desejos
E peço à vida apenas não me negue
O calor da tua boca teus doces beijos

Sonhei como quem sonha um poema
Sonhei como quem sonha a primavera
Desfaleço ao acordar sem teu sorriso
Choro a dor que o meu peito encerra.

Braços vazios e coração despedaçado
Tendo por companhia a pouca sorte
Sou a tristeza, a nostalgia, a saudade
E sinto em mim o gélido frio da morte

Susete Evaristo

355 - Chegou num abraço a madrugada

Foto: Shark

Chegou num abraço a madrugada


Chegou num abraço a madrugada
Envolta em languidez tamanha
Trazendo, vinda não sei de onde
A cadência de uma sinfonia estranha

O brilho das estrelas reluzindo
Desce do céu em doce companhia
Sendo os teus olhos, a luz que alumia
Que aquece e incendeia, a minha poesia

Esta amizade que entre nós flutua
Cúmplices, vivendo de um amor antigo
Eternamente presos a uma só verdade

Embora longe sinto, estás comigo
Quero-te tanto mesmo não sendo tua
Meu terno amor, minha infeliz saudade

Susete Evaristo

354 - Tela de Pintor

 Foto : Shark 

Tela do Pintor

Na imensa solidão do Alentejo
Em tardes salpicadas de saudade
Recordações de ti já tão distantes
Acodem ao meu peito tão presentes

E mesmo na escuridão da noite
Nas horas tristes deste madrugar
Qual pintor cogitando as cores
Invento a doce luz do teu olhar

Nas cores da paleta desta tela
Que teimo dia a dia em recriar
Misturo a amargura e a saudade

E vou vivendo assim da nostalgia
Desta tristeza que persiste em mim ficar
E sonho fantasias de encantar

susete evaristo

353 - Ninguém


Foto: Shark


São para ti
estas palavras meu amor
Dizer-tas desta forma
É meu castigo
Vivi,
Sonhando contigo a vida inteira
E agora que te encontrei
só posso chamar-te
Meu Amigo.