25 março, 2009

265 - Um outro olhar sobre a cidade - Lisboa

Foto:Charquinho

Tempo dividido
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Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas
Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens
Face erguida
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem
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Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdões os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros
No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Do tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen

16 março, 2009

264 - Bailia do Rio Douro

Foto: Shark
BAILIA DO RIO DOURO
Ó rio corre contente
de Castela a Portugal
vem reinar na lusa gente
rumo ao porto em arraial.
Traz à dança da rabela
o rabelo e vai feliz
arrais ao vento e à vela
buscar a arcaica matriz

Baila rio d’ouro
com essa riqueza
que eu guardo o tesouro
de tanta beleza!
Baila assim dourado
num bago de vinho
que eu brindo a teu lado
a um fado marinho!

Aperta no longo abraço
o Portugal maila Espanha
e concerta-os a compasso
no laço que mais convenha.
Vai afogar os desejos
além-ribas sobre o vale
nesse mar enche-o de beijos
de ouro de sol e de sal...

Fernando Pinto Ribeiro In: Colectânea Poética “Correntes… – Louvor aos rios”, lavra…Editorial, 2003

263 - Novo Dia

Foto: Charquinho

AO NOVO DIA
Rebenta dos abismos às montanhas
o sangue que incendeia a madrugada
E um novo dia irrompe das entranhas
da terra finalmente fecundada

Foices malhos enxadas e gadanhas
e punhos semeando-se em rajada
contra lobos ocultos entre as brenhas
alevantam pendões de tudo-ou-nada

Acorda o novo dia. E desta vez
o sol nasce nas mãos do camponês
e põe-se na tigela do operário

Multiplicado o pão por quem o fez
não mais há-de ser hóstia que o burguês
consagre dando a fome por salário

Fernando Pinto Ribeiro

15 março, 2009

262 - Pedra

Foto: Charquinho

Pedra

Hoje sou pedra
nada me move
me incomoda
ou me comove.
Duro granito
parado algures
ténue limite
entre o horizonte
e o infinito.
Digo: sou pedra
e espero o ventos
obre as arestas
sopro de gelo
um corte lento.
Direi: sou pedra
e sei que minto
um toque leve
mesmo de acaso
tudo desfaz.
Restam partículas
um ser difuso
a visão breve
da dor que sinto.