30 abril, 2009

277 - Ao longe

Foto: Charquinho

Visão

Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.

Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento...
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços...

E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,

Soluço de ódio e raiva impenitentes...
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!

Antero de Quental

23 abril, 2009

276 - Malmequer diz-me a verdade

Foto: Shark

Eu levo a vida cantando

Eu levo a vida cantando
Eu levo a vida a cantar
Quem leva a vida cantando
Não lhe custa trabalhar

Malmequer criado no campo
Delírio da mocidade
Pelas tuas brancas folhas
Malmequer diz-me a verdade

Malmequer diz-me a verdade
E guarda-me o meu segredo
Pelas tuas brancas folhas
Malmequer não tenhas medo

Desfolhando o malmequer
Lembrei-me de ti um dia
Malmequer, bem me quer
Era o que a flor dizia
Do cante Alentejano
autor desconhecido

22 abril, 2009

275 - Poema de Outono

Foto: Shark

Poema de Outono

O vento soprou
Tão doce e sereno
Tocou-me ao de leve
Girou sentimentos
Dormentes, silentes
Que em voo rasante
Tocaram o chão
O fundo da alma
Fez-se de cor de ouro
Castanho ou laranja
Deu frutos já secos
De um doce amargo
Surgiu o Outono
No meu coração.

18 abril, 2009

274 - Morangos

Foto: Charquinho

MORANGOS

Nunca houve morangos
como os que tivemos
naquela tarde tórrida
sentados nos degraus
da porta-janela aberta
de frente um para o outro
seus joelhos encostados nos meus
os pratos azuis em nossos colos
os morangos brilhando
na luz quente do sol
nós os mergulhamos em açúcar
olhando um para o outro
sem apressar a festa
para chegar ao fim
os pratos vazios
deitados sobre a pedra juntos
com os dois garfos cruzados
e me aproximei de você
dócil naquele ar
nos meus braços
abandonado como uma criança
da sua boca ávida
o gosto de morangos
na minha memória
inclina-se de volta
deixe-me amá-lo
deixe o sol bater
sobre o nosso esquecimento
uma hora de tudo
o calor intenso
e o relâmpago de verão
nas colinas de Kilpatrick
deixe a tempestade lavar os pratos.

08 abril, 2009

273 - Giestas

Foto: Charquinho

Canção com lágrimasEu canto para ti um mês de giestas
Um mês de morte e crescimento ó meu amigo
Como um cristal partindo-se plangente
No fundo da memória perturbada

Eu canto para ti um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas e sol o grave mês
Em que os mortos amados batem à porta do poema

Porque tu me disseste quem em dera em Lisboa
Quem me dera me Maio depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro

Eu canto para ti Lisboa à tua espera
Teu nome escrito com ternura sobre as águas
E o teu retrato em cada rua onde não passas
Trazendo no sorriso a flor do mês de Maio

Porque tu me disseste quem em dera em Maio
Porque te vi morrer eu canto para ti
Lisboa e o sol Lisboa com lágrimas
Lisboa a tua espera ó meu irmão tão breve
Eu canto para ti Lisboa à tua espera...

Adriano Correia de Oliveira
A minha Homenagem a Adriano que amanhã 9 de Abril faria 67 anos

07 abril, 2009

272 - Lodo














































Foto: CharquinhoLamaçal
As minhas botas estão negras
Negras e pesadas desta lama,
Absurda tentação
De chafurdar neste imenso lodo
Onde crianças nuas de barrigas gordas
Me agarram as calças.

Quero apressar o passo
Atrasar-me o espanto,
Espanto de ver nomes
Que o deviam ser
Caminhar curvados,
Braços estendidos
À procura do caminho,
Outros já cansados
Imitam a sombra no chão.

Mais alem
Onde a luz do Sol se reflecte
No sangue negro de um soldado,
Um cão vadio
Leva ao mendigo
O pão seco que ele não vê.

Quero apressar o passo
Mas a lama engrossa mais,
Tanto como o meu espanto,
Porque ao lado
No passeio mais acima
Longe dos ratos que tudo aproveitam
Caminha uma dama de vestes brancas
A que peço ajuda
Mas não vê.

Quero apressar o passo
Mas o frio tolhe-me os músculos,
O frio desta terra
Onde o calor da vida
Há muito se extinguiu.

06 abril, 2009

271 - Contrastes

Foto: Charquinho

Contrários

Em lágrimas e rios se define
a dialéctica da esperança
nas lágrimas que são o espanto e o frio
nos rios, a torrente que não cansa

De contrários se faz toda a harmonia
e nascem as crisálidas, nas casas,
entre o sonho e o preço da alegria
no desenho do voo antes das asas

Assim meus versos noutros explicados,
contradições, crisálidas, bolor,
me levassem à fonte donde corre ,
a harmonia do canto libertado.
Carlos de Oliveira

270 - Namoro


Foto: Charquinho

Desejo a você…

Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Crônica de Rubem Braga
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Uma tarde amena
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu
Carlos Drumond de Andrade

05 abril, 2009

269 - A Ponte

Foto: Shark

A PONTE


Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
de pedra e de aço
onde não permaneço
— p a s s o.

Zila Mamede

268 - A POSTA COM SENTIDO

Foto: Charquinho 22/Dez/2005

NADA FICA DE NADA

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

14/02/1933(Odes de Ricardo Reis)

04 abril, 2009

267 - Os Descobrimentos

Foto: Charquinho
Mensagem

"Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar.

Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."
Fernando Pessoa

266 - Colóquios dos Simples e Drogas da India

Seguro livro meu, da qui te parte,
Que com huma causa justa me consolo,
De verte oferecer ho inculto colo,
Ao cutello mordás, em toda a parte.
E esta he, que da qui mando examinarte,
Por hum Senhór, que de hum ao outro polo,
Sò nelle tem mostrado ho douto Apollo
Ter competencia igual có duro Marte.
Ali acharás defensa verdadeira
Com força de razoens, ou de Osadia,
Que huma virtude a outra não derrogua.
Mas na sua fronte há Palma, e há Oliveira,
Te dirão que elle só, de igual valia
Fez co sanguineo arnez, ha branca Togua.

Garcia de Orta
O autor falando do seu livro
(português arcaico)