31 outubro, 2009

326 - Meu País

 Foto: SharkO Meu País

Um país que crianças elimina;
E não ouve o clamor dos esquecidos;
Onde nunca os humildes são ouvidos;
E uma elite sem Deus é que domina;
Que permite um estupro em cada esquina;
E a certeza da dúvida infeliz;
Onde quem tem razão passa a servis;
E maltratam o negro e a mulher;
Pode ser o país de quem quiser;
Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país onde as leis são descartáveis;
Por ausência de códigos corretos;
Com noventa milhões de analfabetos;
E multidão maior de miseráveis;
Um país onde os homens confiáveis não têm voz,
Não têm vez,
Nem diretriz;
Mas corruptos têm voz,
Têm vez,
Têm bis,
E o respaldo de um estímulo incomum;
Pode ser o país de qualquer um;
Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país que os seus índios discrimina;
E a Ciência e a Arte não respeita;
Um país que ainda morre de maleita,
por atraso geral da Medicina;
Um país onde a Escola não ensina;
E o Hospital não dispõe de Raios X;
Onde o povo da vila só é feliz;
Quando tem água de chuva e luz de sol;
Pode ser o país do futebol;
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que é doente;
Não se cura;
Quer ficar sempre no terceiro mundo;
Que do poço fatal chegou ao fundo;
Sem saber emergir da noite escura;
Um país que perdeu a compostura;
Atendendo a políticos sutis;
Que dividem o Brasil em mil brasis;
Para melhor assaltar, de ponta a ponta;
Pode ser um país de faz de conta;
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que perdeu a identidade;
Sepultou o idioma Português;
Aprendeu a falar pornô e Inglês;
Aderindo à global vulgaridade;
Um país que não tem capacidade;
De saber o que pensa e o que diz;
E não sabe curar a cicatriz;
Desse povo tão bom que vive mal;
Pode ser o país do carnaval;
Mas não é, com certeza, o meu país!
João de Almeida Neto

26 outubro, 2009

325 - Senhora da Saúde











































Foto: Shark

Há festa na Mouraria

Há festa na Mouraria
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde.
Até a Rosa Maria,
Da Rua do Capelão,
Parece que tem virtude.

Naquele bairro fadista,
Calaram-se as guitarradas.
Não se canta nesse dia;
Velha tradição bairrista:
Vibram no ar badaladas
Há festa na Mouraria

Colchas ricas nas janelas,
Pétalas soltas no chão,
Almas crentes, povo rude.
Anda a fé pelas vielas,
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde.

Após um curto rumor,
Profundo silêncio pesa,
Por sobre o Largo da Guia.
Passa a Virgem no andor,
Tudo se ajoelha e reza,
Até a Rosa Maria.

Como que petrificada,
Em fervorosa oração,
É tal a sua atitude,
Que a rosa já desfolhada,
Da Rua do Capelão,
Parece que tem virtude.
Gabriel de Oliveira

25 outubro, 2009

324 - Viagem

Foto: Shark

Viagem
É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...

Miguel Torga, in 'Diário XII'

323 - No combóio descendente

Foto: Shark


No Combóio Descendente
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão
Fernando Pessoa

21 outubro, 2009

322 - Poema repetido...

Foto: Shark

Toada de Portalegre
(Extracto do poema )

Lá num craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus ...
E, louvado seja Deus !
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a ceta cansada
Que dava cravos sem vida.
(extrato do poema de José Régio,
publicado com nº. 71 neste blogue)

15 outubro, 2009

321 - Gente do Povo

Foto: Charquinho
Esta gente

Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova

E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo
sophia de mello breyner andersen