
Foto:
CharquinhoPassa-lhe ao lado a cidade
Passa-lhe ao lado a cidade
no contexto de uma realidade
que é só sua e de mais ninguém.
Não se sente mal
nem se sente bem,
não chora
mas não lhe dá para rir,
também dispensou
esse luxo que é sentir.
Abdicou da emoção
quando se percebeu incapaz
de lidar com as memórias
de tempos atrás.
E aprendeu que no futuro
de pouco lhe iriam valer,
essas lembranças
que fazem doer.
Cansou-se de enfrentar a reacção
desesperada
de cada pessoa amada
que tentava em vão
contrariar-lhe a decadência
e que depois ele sentia
como uma indecência
a sua presença perniciosa
nas vidas que lhe competia partilhar.
Um dia decidiu…
Quanto tempo não sabia,
que lhe restava e o que jazia
na masmorra fechada
num canto da sua mente anestesiada
à prova de emoções,
a alma afogada em alucinações…
Acreditava-se
com as rédeas da sua vida na mão,
independente,
mais livre
enquanto indigente
do que na pele controlada
por um papel a cumprir
numa vida tramada
para todos os que se deixavam arrastar
por uma maleita qualquer
que culmina no ensandecer…
Às vezes apetece-lhe sorrir,
mas descobre que é engano
quando o calor metropolitano
o lembra do frio interior
e é então que desliga o olhar,
pousado sem brilho
num ponto fixo da cidade
que lhe passa ao lado
enquanto rumina
em silêncio
a melhor solução
para a próxima refeição,
desatinado
por já nem conseguir lembrar-se
de como desenrascou a anterior.
"Charquinho"