19 dezembro, 2009

331 - Batentes

Foto: Shark
UM LEÃO LADEIA

Um leão ladeia
as portas do teu ânimo de ferro
Séculos e séculos esbatem
o relevo das garras
nas esferas de pedra
Quem o olha imobiliza-se
vendo-o com uma esfíngica
expressão de antiguidade
Nos globos oculares que a areia corroeu
há mesmo um gladiador espelhado
E nem a juba se acama, dócil
à ideia de que a tua mão acaricia
Um leão ladeia
as portas do teu ânimo de ferro.
Sebastião Alba

07 dezembro, 2009

330 - Noite em Lisboa

Foto: Shark

Nas ruas da noite

No crepitar de estilhaços
de estrelas sobre os espaços
da Lisboa rua em rua —
crucificámos abraços
encruzilhados nos passos
que à noite a lua insinua

Em nossas bocas unidas
sangrámos todas as feridas
dos beijos amordaçados —
salvámos vidas vencidas
que andam na treva perdidas
como num mar afogados

Cegos de sombras e lama
Quando a sede que se inflama
numa inquisição divina —
bebemos o vinho em chama
que sanguíneo se derrama
no candeeiro da esquina

Embriagados de lume
sem dissipar o negrume
do fumo que nos oprime —
rezamos em seu queixume
no cio do meu ciúme
fados do amor feito crime

Crucificamos abraços
encruzilhados nos passos
que a noite nua desnua —
crepitantes de estilhaços
de estrelas quando em pedaços
vêm morrer sobre a rua
Fernando Pinto Ribeiro

12 novembro, 2009

329 - Gato Preto

Foto: Shark

Vira

O gato preto cruzou a estrada,
Passou por debaixo da escada
E lá do fundo azul na noite da floresta
A lua iluminou, a dança, a roda a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Vira, vira lobisomem

Bailam corujas e pirilampos
Entre os jardins e as fadas
E la no fundo azul na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa.

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem
Vira, vira
Vira, vira lobisomem.

João Ricardo

328 - A Cadeira do barbeiro

Foto: Shark

A Cadeira do barbeiro

É na cadeira de barbeiro que a gente sabe o que sabe,
quando se corta a "guedelha", quando o cabelo se abate,
se faz o corte das unhas dos governantes, pois, pois...
E se ensaboa a má língua, depois.
É na cadeira de barbeiro que a gente vai fofocar,
enquanto lustra o sapato e toca, toca a engraxar.
se dá o aparo ao bigode e à vida doutros, também...
Mas nunca se diz mal de ninguém!

É dar e dar à tesoura,e as navalhadas são mil.
É no barbeiro que a conversa é baril.
Ali se sabe sempre e em primeira mão,
o que vem nos jornais, Rádio e Televisão.

É na cadeira do barbeiro que a gente sabe, pois é.
Que a D. Berta e o vizinho, são só amigos... não é?

E que o fulano da esquina, a quem se chama Doutor,
não tem canudo, não tem, não senhor.
É na cadeira do barbeiro que a gente sabe o que sabe,
quando se corta a "guedelha", quando o cabelo se abate.
Se faz o corte das unhas, dos governantes, pois, pois...
E se ensaboa a má língua, depois.
António Sala

09 novembro, 2009

327 - A Pilita

Foto: Charquinho


A PILITA ALENTEJANA

Rija, enquanto durou.
Agora q'amolengou
e antes q'a morda a cobra,
Vou atá-la c'uma corda
Pra ela nã me fugiri.
Preciso da sacudiri,
Leva tempo pá'cordari
Já nem se sabe esticari.

Más lenta q'um caracoli,
Enrola-se-me no lençoli.
Ninguém a tira dali,
Já só dá em preguiçari.
Nada a faz alevantari
E já nã dá com o monti,
Nem água bebe na fonti.

Que bich'é que lhe mordeu?

Parece defunta, morreu.
Deu-lhe p'ra enjoari,
Nem lh'apetece cheirari.
Jovem, metia inveja.
Com más gás q'uma cerveja,
Sempre pronta p'ra brincari.

Cu diga a minha Maria,
Era de nôte e de dia.
Até as mulheres da vila,
Marcavam lugar na fila,
P'ra eu lha poder mostrari !
Uma moura a trabalhari,
Motivo do mê orgulho.
Fazia cá um barulho !
Entrava pelos quintais,
Inté espantava os animais.
Eram duas, três e quatro,
Da cozinha até ao quarto
E até debaixo da cama.
Esta bicha tinha fama.

Punha tudo em alvoroço,
Desde o mê tempo de moço.
A idade nã perdoa,
Acabô-se a vida boa !

Depois de tanto caçari,
Já merece descansari.
Contava já mê avô:
"Niuma rata lhe escapou !
"É o sangui das gerações.
Mas nada de confusões,

Pois esta estória aqui escrita,
É da minha gata, A Pilita !



(autor desconhecido)

31 outubro, 2009

326 - Meu País

 Foto: SharkO Meu País

Um país que crianças elimina;
E não ouve o clamor dos esquecidos;
Onde nunca os humildes são ouvidos;
E uma elite sem Deus é que domina;
Que permite um estupro em cada esquina;
E a certeza da dúvida infeliz;
Onde quem tem razão passa a servis;
E maltratam o negro e a mulher;
Pode ser o país de quem quiser;
Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país onde as leis são descartáveis;
Por ausência de códigos corretos;
Com noventa milhões de analfabetos;
E multidão maior de miseráveis;
Um país onde os homens confiáveis não têm voz,
Não têm vez,
Nem diretriz;
Mas corruptos têm voz,
Têm vez,
Têm bis,
E o respaldo de um estímulo incomum;
Pode ser o país de qualquer um;
Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país que os seus índios discrimina;
E a Ciência e a Arte não respeita;
Um país que ainda morre de maleita,
por atraso geral da Medicina;
Um país onde a Escola não ensina;
E o Hospital não dispõe de Raios X;
Onde o povo da vila só é feliz;
Quando tem água de chuva e luz de sol;
Pode ser o país do futebol;
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que é doente;
Não se cura;
Quer ficar sempre no terceiro mundo;
Que do poço fatal chegou ao fundo;
Sem saber emergir da noite escura;
Um país que perdeu a compostura;
Atendendo a políticos sutis;
Que dividem o Brasil em mil brasis;
Para melhor assaltar, de ponta a ponta;
Pode ser um país de faz de conta;
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que perdeu a identidade;
Sepultou o idioma Português;
Aprendeu a falar pornô e Inglês;
Aderindo à global vulgaridade;
Um país que não tem capacidade;
De saber o que pensa e o que diz;
E não sabe curar a cicatriz;
Desse povo tão bom que vive mal;
Pode ser o país do carnaval;
Mas não é, com certeza, o meu país!
João de Almeida Neto

26 outubro, 2009

325 - Senhora da Saúde











































Foto: Shark

Há festa na Mouraria

Há festa na Mouraria
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde.
Até a Rosa Maria,
Da Rua do Capelão,
Parece que tem virtude.

Naquele bairro fadista,
Calaram-se as guitarradas.
Não se canta nesse dia;
Velha tradição bairrista:
Vibram no ar badaladas
Há festa na Mouraria

Colchas ricas nas janelas,
Pétalas soltas no chão,
Almas crentes, povo rude.
Anda a fé pelas vielas,
É dia da procissão
Da Senhora da Saúde.

Após um curto rumor,
Profundo silêncio pesa,
Por sobre o Largo da Guia.
Passa a Virgem no andor,
Tudo se ajoelha e reza,
Até a Rosa Maria.

Como que petrificada,
Em fervorosa oração,
É tal a sua atitude,
Que a rosa já desfolhada,
Da Rua do Capelão,
Parece que tem virtude.
Gabriel de Oliveira

25 outubro, 2009

324 - Viagem

Foto: Shark

Viagem
É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...

Miguel Torga, in 'Diário XII'

323 - No combóio descendente

Foto: Shark


No Combóio Descendente
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão
Fernando Pessoa

21 outubro, 2009

322 - Poema repetido...

Foto: Shark

Toada de Portalegre
(Extracto do poema )

Lá num craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus ...
E, louvado seja Deus !
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a ceta cansada
Que dava cravos sem vida.
(extrato do poema de José Régio,
publicado com nº. 71 neste blogue)

15 outubro, 2009

321 - Gente do Povo

Foto: Charquinho
Esta gente

Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova

E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo
sophia de mello breyner andersen

22 setembro, 2009

320 - Minha Terra tem Palmeiras














































Foto: Shark
Canção do exilio

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias
Coimbra, Julho 1843

319 - Reciclar é preciso

Foto: Shark
Rap Ecológico

Devemos cuidar
Do meio ambiente
Afinal de contas
É a casa da gente.
O nosso projeto
É uma beleza
Ensina a gente
A cuidar da natureza
Como é que vamos
Cuidar do meio ambiente?
Do jeito que está
Vai ficar permanente
Olha só meu amigo
Quanta poluição
Vamos já procurar
Uma boa solução
Já conheço uma
Que é bem legal
Reciclar papel
É fundamental
Separar o lixo
Não é nada difícil
Se você pensar
Logo vai notar
Esse é o rap
Do projeto ecologia
Venha conosco
Mergulhar nessa magia
Colaboração de Artur Gehlen Adams quando tinha 9 anos. NH

318 - A minha cidade













































Foto: Shark

A minha cidade

A minha cidade não se chama Lisboa,
não tem cheiro a sul
e nem por ela passa o Tejo,
mas como ela, tem Nascentes
leitosos e marmóreos...
Na minha cidade os Poentes são de ouro
sobre o Douro e o mar
e só ela tem a luz do entardecer
a enfeitar o granito...
Na minha cidade, tal como em Lisboa
há gaivotas e maresia
mas não há cacilheiros no rio
há rabelos
transportando nectar e almas...
Da minha cidade nasce o Norte
alcantilado, insubmisso
e o sol, quando chega, penetra-a
delicadamente, carinhosamente,
depois de vencido o nevoeiro...
Na minha cidade também há pregões,
gatos, pombas, castanhas assadas e iscas
e fado pelas vielas, pendurado com molas,
como roupa a secar nos arames...
A minha cidade tem também tardes languescentes,
coretos nas praças
velhos jogando cartas em mesas de jardim
e o revivalismo de viuvas e solteironas
passeando de eléctrico...
É bem verdade que na minha cidade
a luz, não é como a de Lisboa
mas a luz da minha cidade
é um frémito de amor do astro-rei
a beijá-la na fronte, cada manhã!...

Maria Mamede

15 setembro, 2009

317 - Nuclear

Foto: Shark
Psicologia de Um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
(Augusto dos Santos)

316 - Rubra, incandescente

Foto: Shark

Vaso Chinês

Estranho mimo, aquele vaso! Vi-o
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio
Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado
Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura —
Quem o sabe? — de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A genta acaso vendo-a
Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa.
(Alberto Oliveira)

315 - POEMA DA BICICLETA

Foto: Shark

POEMA DA BICICLETA

Era uma vez
Uma bicicleta
Que eu tinha
Que era minha...
Que não tinha rodas
Mas que rodava comigo
Mundo a fora
Afora o horário

E eu nem amava o sonho
Pois não sabia
Aquilo o que era
Só sei que viajava
E achava bonito
Pedalar, sem cessar
Sem cansar

Sem sair do lugar
Ir a todo lugar
Até chegar no fim
(do sonho);
Uma bicicleta nova
Que nunca me levou...
A lugar nenhum
S. Paulo, 24/02/2003
CORDEIRO

314 - Apontamentos

Foto: Shark

Ao correr da pena

Uma prateleira branca
Com palavras cujas lombadas,
ficam tão bem arrumadas…

cada palavra tem uma história
por detrás,
ou mais do que uma,
tanto faz…

Num acto solitário,
que a solidão é um receio primário,
instintivo, na arrumação
temo a cada passo a constatação
de mais um fracasso …

Logo abaixo da primeira
preenchi outra com palavras destinadas
a serem devoradas…

Olhares famintos de coisas interessantes
que me inibo de acreditar ser capaz de arrumar
com os meus dedos hesitantes.
Letras estampadas que me compete juntar
em palavras arrumadas

A estante quase a abarrotar
com o que consigo dar
a viajantes virtuais que procuram os sinais
que vou deixando aqui e além,
pequenos marcadores
com relatos dos meus amores
ou de outra coisa qualquer,
tudo aquilo que puder encaixar
nos espaços vazios
que tento forrar de ideias e emoções,
de pensamentos e sensações
que me definem
aos olhos de quem se serve agora
desta obra sempre inacabada
que anseio ter forças para prolongar.

Esta tentativa vã,
frustrada,
de me conseguir comunicar.
(Shark)

18 agosto, 2009

313 - A Montanha

Foto:Charquinho

A Montanha

Subi a montanha
Para ver a beleza
Queria falar sozinho
Com a natureza

Olhei para o céu
Mas não vi ninguém
Só vi umas nuvens
Em forma de véu

Ao chegar ao alto
Era muito cedo
Havia uma voz
-Tu não tenhas medo

Chegando ao cimo
Logo me deitei
Tudo era sonho
Logo que acordei

Desconhecia tudo
Não sabia nada…
Queria subir mais alto
Mas não tinha estrada

Olhei para o lado
E vi um caminho
Uma voz me disse
Não subas sozinho

Pensei duas vezes
Não quis arriscar
Do alto do monte
Já só via o mar

Como era tarde
Pensei em descer
O medo era tanto
Que me fez tremer

Assim a tremer
Vi uma escadaria
Desci por ela
Vi o que queria

José Augusto Simões

17 agosto, 2009

312 - Ruinas

Foto: Shark

O velho palácio

Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinhais pregar
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas.

Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...

Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...

Como nessa varanda apodrecida
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta,
Como nessa varanda apodrecida...
Gomes Leal.

13 agosto, 2009

311 - Eu

Foto: Shark

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca

12 agosto, 2009

310 - Canção do Mar

Foto: Shark

Canção do Mar
Fui bailar no meu batel
Além do mar cruel
E o mar bramindo
Diz que eu fui roubar
A luz sem par
Do teu olhar tão lindo
Vem saber se o mar terá razão

Vem cá ver bailar meu coração
Se eu bailar no meu batel

Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo aonde eu fui cantar
Sorrir, bailar, viver, sonhar contigo
Vem saber se o mar terá razão

Vem cá ver bailar meu coração
Se eu bailar no meu batel

Não vou ao mar cruel
E nem lhe digo aonde eu fui cantar
Sorrir, bailar, viver, sonhar contigo
Frederico de Brito / Ferrer Trindade

309 - Dia 12 de Agosto - 2 anos de Imagens e poemas

Foto: Shark

Prosseguir

Um a um,
apagaram-se os candeeiros
que iluminam a minha estrada...
um a um...
não ficou nada...
tudo escuro como breu...
tudo da cor apagada
daquilo que nunca foi...
E eu?...
Como vou continuar?...
Tacteando como um cego
ainda a aprender a andar,
como jovem marinheiro
que nunca esteve no mar?...
Onde está minha bengala,
minha ajuda, meu bordão?...
ah!... se alguém me desse a mão!...
Mas não!...
A maior parte da gente
que vai aqui a meu lado,
não consegue, se bem tente,
ajudar um só bocado...
E, um a um,
apagaram-se os candeeiros
que iluminam a minha estrada.....
só resta continuar...
É mais ou menos tropeço...
Para quem tropeçou tanto,
não faz mal mais uma queda...
Já nem dá para ter pranto
que adoce uma vida azeda...
só resta continuar...
Fazendo desta fraqueza
em que mergulho, por vezes,
a penumbra duma noite
que jamais terá aurora...
E, mesmo que não se afoite
a coragem que já tive,
prosseguindo a caminhada,
mesmo com lingua de fora......
sozinho, sim!......
cego, também!......
levando-me a mim
para além do além...
E, se um dia, por azar,
uma luz, um raio só,
por mim vier a chamar,
mesmo que seja por dó,
erguerei minhas espaldas,
limpar-me-ei da poeira,
ajeitarei os remendos
e, de mãos na algibeira,
gritarei, sereno, altivo:
“Prefiro a escuridão!...
Com ela vivo!...
Contigo, luz, não!”....
(magpinto)

10 agosto, 2009

308 - E de negro se vestiram

Foto: Shark

Litoral

Neste mesmo local,
de olhos postos no mar,
- quantas mulheres de Portugal
se vieram sentar?

Quantas e quantas gerações aqui vieram
até à presente geração,
que lutaram, pescaram e comeram
sardinha com pão

Neste mesmo local,
de olhos cansados do mar,
ai quantas mulheres do litoral
se vieram sentar...

Manhãs de tempestades despertaram,
homens e homens partiram,
mulheres enviuvaram
e de negro se vestiram.

E como prémio tiveram,
tiveram como pensão,
algumas frazes piedosas que lhes deram
e nem sardinha com pão, nem sardinha com pão.
Sidónio Muralha

08 agosto, 2009

307 - Outra vez o MAR

Foto: Shark

Poema

Na espuma verde do mar
Desenharei o teu nome,
Em cada areia da praia
Em cada pólen da flor
Em cada gota do orvalho
O teu nome deixarei gravado

No protesto calado
De cada homem ultrajado
Em cada insulto
Em cada folha caída
Em cada boca faminta
Hei-de escrever o teu nome

Nos seios férteis das virgens
Nos sorrisos perenes das mães
Nos dedos dos namorados
No embrião da semente
Na luz irreal das estrelas
Nos limites do tempo
Hei-de uma esperança semear
.
António Mendes Cardoso

25 junho, 2009

306 - Evadir-me

Foto: Charquinho

Evadir-me, esquecer-me

Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen

305 - Poema do Pescador

Foto: Charquinho

Quinto poema do pescador

Eu não sei de oração se não perguntas
ou silêncios ou gestos de ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.
Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.
Manuel Alegre

23 junho, 2009

304 - Como um pássaro sozinho

Foto: Charquinho

Desencanto

É triste o meu canto
E, no entanto, vou cantando
Que o canto me exuga o pranto
Que meus olhos vão chorando

Há quem chore por um Bem
Que a vida lhe recusou,
Mas eu choro pelo Alguém
Que quiz ser e que não sou,

Canto pois, e cantarei,
Que o canto me enxuga o pranto;
- Choro de um desencanto
Que toda a vida chorei

Coimbra Resende

303 - Sr. Lagarto

Foto: Shark

O Lagarto está chorando

O lagarto está chorando
A lagarta está chorando
O lagarto e a lagarta
Com aventaizinhos brancos
Hão perdido sem querer
Seu anel de casamento
Ai! Seu anelzinho de chumbo,
Ai, seu anelzinho chumbado
Um céu grande e sem gente
Monta em seu globo aos pássaros
O sol, capitão redondo
Leva um colete de raso
Olhem que velhos são!
Que velhos são os lagartos!
Ai como choram e choram,
Ai! Ai! Como estão chorando!
Garcia Lorca

22 junho, 2009

302 - Ainda e outra vez as pessoas

Foto: Shark

PRESÍDIO

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
É também água, terra, vento, fogo...

E sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
David Mourão Ferreira

301 - Pessoas

Foto: Shark

LÚBRICA

Quando a vejo, de tarde, na alameda,
Arrastando com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,

E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete;

Pela mente me passa em nuvem densa
Um tropel infinito de desejos:
Quero, às vezes, sorvê-la, em grandes beijos,
Da luxúria febril na chama intensa...

Desejo, num transporte de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nesses abraços
A sua carne branca e palpitante;

Como, da Ásia nos bosques tropicais
Apertam, em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente,
Aos troncos das palmeiras colossais.

Mas, depois, quando o peso do cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando, repousa, todo o dia,
À sombra da palmeira, o corpo lasso.

Assim, quisera eu, exausto, quando,
No delírio da gula todo absorto,
Me prostasse, embriagado, semimorto,
O vapor do prazer em sono brando;

Entrever, sobre fundo esvaecido,
Dos fantasmas da febre o incerto mar,
Mas sempre sob o azul do seu olhar,
Aspirando o frescor do seu vestido,

Como os ébrios chineses, delirantes,
Respiram, a dormir, o fumo quieto,
Que o seu longo cachimbo predileto
No ambiente espalhava pouco antes...

Se me lembra, porém, que essa doçura,
Efeito da inocência em que anda envolta,
Me foge, como um sonho, ou nuvem solta,
Ao ferir-lhe um só beijo a face pura;

Que há de dissipar-se no momento
Em que eu tentar correr para abraçá-la,
Miragem inconstante, que resvala
No horizonte do louco pensamento;

Quero admirá-la, então, tranqüilamente,
Em feliz apatia, de olhos fitos,
Como admiro o matiz dos passaritos,
Temendo que o ruído os afugente;

Para assim conservar-lhe a graça imensa,
E ver outros mordidos por desejos
De sorver sua carne, em grandes beijos,
Da luxúria febril na chama intensa...

Mas não posso contar: nada há que exceda
A nuvem de desejos que me esmaga,
Quando a vejo, da tarde à sombra vaga,
Passeando sózinha na alameda
Camilo Pessanha

300 - Pessoas

Foto: Shark

Poema kitsch

Tu és o meu veneno e o meu vício
uma forma de estar fora de mim
sem ti o que era espera faz-se ofício
a vontade de te ter noite sem fim
esse tu não estares, um breve indício
de flores morrendo no jardim.

Há um sítio em mim por habitar
casa para sempre em construção
há traves altos andaimes pelo ar
estaleiro abandonado junto ao chão
onde antes se julgava que era o mar
não há vagas nem marés nem barcos vão.

Se a hora de chegares fica esquecida
não mais posso esperar tua presença
o que antes era corpo tornou ferida
tudo o mais reduto de indiferença
pois onde agora a sombra estava a vida
onde antes a luz a noite imensa.

Bernardo Pinto de Almeida

20 junho, 2009

299 - Mar

Foto: Charquinho

MAR

Alto, como perdido,
o sol navega e deixa-se boiar...
A luz não cega
E o mar é só mar.

É água presa que não tem domínio
Ou gigante que morre em convulsões ...
É praia num beijo,
História antiga das embarcações.

É um destino ou gesto de partida,
sem haver esperança de chegar
É talvez uma vida...
- É apenas o Mar.
César Teixeira

298 - O Corvo

Foto: Charquinho

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
"Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.
" Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais
,O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!
" Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!
" Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Edgar Poen

19 junho, 2009

297 - Lisboa ... poemas sem fim

Foto: Shark - 30/10/2007

LISBOA

Ó Lisboa de saia arregaçada
A sorrir e a palrar à beira Tejo,
E que o sol, mal desponta a madrugada,
Vem aloirar no cântico de um beijo!

Ó Lisboa! Ó girândola de cores
A estoirarem nas fúlgidas colinas!
Lisboa das fragatas e vapores,
Das nervosas e lépidas varinas!

Minha velha Lisboa das conquistas
- Clarão de fé nas hostes infiéis –
Lisboa maravilha dos artistas,
Berço e sonho de infantes e de reis!

Ó Lisboa a cheirar a maresia
Na gente sã e rija das vielas
- Almas do mar, herdeiras da energia
Que levou mundo além, as caravelas!

Ó Lisboa das marchas e cantares
- Aleluia de coros e balões.
Ó Lisboa dos Santos Populares,
Dos presépios que embalam corações!

Lisboa linda moça sem vaidade
Irmã do Sol, alegre e descuidosa!
Ai! Quem me dera a tua mocidade,
A tua vida simples, cor-de-rosa!...
Coimbra de Resende

05 junho, 2009

296 - D.José I

Foto: Charquinho

SONETO

América sujeita, Ásia vencida;
África escrava. Europa respeitosa;
Restaurada mais rica, e mais formosa
A fundação de Ulisses destruída

São a base, em que vemos ereguida
A Colossal estatua magestosa
Que D´ELREI á memória glorifica
Consagrou Lusitânia agradecida

Mas como a gloriado Monarca justo
É bem que àquele Herói se comunique,
Que a fama canta, que eterniza o Busto;

Pombal, junto a JOSÉ eterno fique,
Qual o famoso Agripa junto a Augusto,
Como Sully ao pé do grande Henrique.
Ignacio José de Alvarenga

295 - Passeio ao campo

Foto: Charquinho

Maio

Andam caprichos
Da madrugada
Na terra exausta
De mais não ser.

Amores lentos
De caravelas,
Precocidades,
Lúcidos ais.

Redemoinho
Que a noite vence,
Escadaria
De uma ascenção

Foi um dia longo
De corpos e flores.

César Teixeira

04 junho, 2009

294 - Flamingos no Tejo

Foto: Charquinho
Flamingo

O pescoço dobrou-se sobreo
corpo róseo

uma pata encolhida descansa noutra
transformada em estaca

o flamingo adormece em si o horizonte
como flor espetada no pântano
Júlio Carrilho

293 - Amanhã

Foto: Charqinho

Manhã

Venho das nuvens
E trouxe no meu peito a madrugada

Fonte de sonho na manhã deserta,
Com estrelas pairando sobre o mar.

Acordo neste dia transparente,
Que se dilui nas praias do além,
Onde a brisa dormiu o onde nasce
O crepúsculo vivo entre as marés …

César Teixeira

03 junho, 2009

292 - Farol

Foto: Charquinho

O Farol

Na amplidão do mar alto entre as vagas se apruma
O vulto do farol como uma sentinela;

Estardalhaça o vento, e a rugir se encapela
A água negra do mar em turbilhões de espuma.

Enche a trágica noite, atroa e se avoluma
Um insano clamor nas asas da procela:
É a morte! E ao temporal que as vagas atropela
Rodopiam as naus na escuridão da bruma.

Mas, súbito um clarão a espessa treva inflama,
Acende o mar bravio, ilumina os escolhos,
E guia o rumo às naus contra os parcéis da morte...

É a vida! É o farol que escancarando os olhos,
Vira e revira em torno as órbitas de chama,
Ora ao Norte, ora ao Sul, ora ao Sul, ora ao Norte...




Victor Silva

02 junho, 2009

291 - Gaivota

Foto: Shark

Perspectiva

Uma gaivota deslizando ao longo
De um grito de ternura macerada

Surgem magias, rápidos encantos,
Quando a noite se perde na raiz.

Sem que um sorriso volte do passado,
Enegressem as rosas da manhã

No horizonte as nuvens são de prata,
Vislumbres de fantásticos navios.
César Teixeira

290 - Saudade



































Foto: Shark

SAUDADE DO TEU CORPO

Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?...

Anda a saudade do teu corpo (sentes?...)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado...»

É o teu corpo em sombra esta saudade...
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade...

Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra...
Vês?! A saudade é um escultor antigo!

António Patrício

01 junho, 2009

289 - Entardecer

Foto: Charquinho

Sombras

Nas horas de silêncio, quando a noite
Guardou um sonho que não teve
E nem o mudo som de um leve açoite
Vem da folhagem, onde a brisa esteve.

Eu falo às sombras, embrião do nada,
Através do passado e do futuro,
Até surgir a luz da madrugada
No limite distante em que as procuro.

Falo convosco, Sombras… Pensamento
Que vai perder-se, vago, na distância…
Temos agora o mesmo comprimento
De onda, e sonhamos nesta concordância…

Dizeis segredos que nenhuma voz
Humana deste mundo jamais disse
E ficamos tão lúcido e sós,
Como se a nossa vida se extinguisse.

Nesta paisagem onde existe o sonho
Que vai morrer assim que nasce o dia
Da luz do sol, que vejo mais risonho
Sobre o mar furioso em agonia.


César Teixeira

288 - Bailarinas

Foto: Charquinho

Dança

Rifão da morte, deltas e baladas
Palavras que modelam a cintura.

Para onde vamos se não há moradas ?

Onde nasce o momento que perdura?
Bailarinas de formas compassadas

Viajam sem perderem a ternura
César Teixeira

287 - Outra vez o Mar

Foto: Charquinho
E o Homens não compreendem

Encostei aos meus ouvidos
Dois búzios e, em seu cantar,
Ouvi as notas da mesma
Canção longínqua do mar.

Canção distante que vem
Desde quando o mundo era
Só agua, fogo, atmosfera
E a voz do homem ninguém.

Ora foi essa canção
Que os búzios quando nasceram
Escutaram em silêncio
E nunca mais esqueceram

E, assim, ficaram irmãos,
Irmãos pelo mesmo canto,
Que na areia dão as mãos
E humanamente se entendem…

Entretanto os búzios cantam
E os homens não compreendem
.

Coimbra de Resende

31 maio, 2009

286 - Luzes da ribalta

Foto: Shark

Aplausos para o Actor

O actor acende a boca.
Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeçade búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila,
o que arde destacadamente na noite, é o actor,
com uma voz pura monotonamente
batida pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira o adjectivo da coisa,
a subtileza da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã
com sua divagação de maçã.
Fabrica peixes
mergulhados na própria labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor
contra a face de Deus.
Ornamenta Deus
com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave
que atravessa a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro.
Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio
que ramificou de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente do Nome.
Nome que se murmura em si,e agita, e enlouquece.
O actor é o grande Nomecheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção da transformação.
Solidifica-se.
Gaseifica-se.
Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas, as ruas - o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça.
Em compacto estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder

18 maio, 2009

285 - Pinguins

Foto: Charquinho

PINGUIM

Bom dia, pingüim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca
Quando você caminha
Parece o Chacrinha
Lelé da caixola
E um velho senhor
Que foi meu professor
No meu tempo de escola
Pingüim, meu amigo
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê
Mas todos põem você
Em cima da geladeira
Vinicius de Morais

16 maio, 2009

284 - Parabéns

Foto: Charquinho

Dia de anos

Com que então caiu na asneira
De fazer na quinta-feira
Vinte e seis anos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazê-los não parece
De quem tem muito miolo!

Não sei quem foi que me disse
Que fez a mesma tolice
Aqui o ano passado…
Agora o que vem, aposto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!

Não faça tal; porque os anos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho:
Faça outra coisa; que em suma
Não fazer coisa nenhuma,
Também lhe não aconselho.

Mas anos, não caia nessa!
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira,
Mas depois se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fá-los, queira ou não queira!
João de Deus

283 - Alentejo ... sempre

Foto: Charquinho

A Alma do Ganhão

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma do ganhão
Cheia de horizonte, cãntico de fonte
Catedral de trigo, azeite e pão

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma da cegonha
Que sobe no vento e ouve o lamento
Do homem que ao sul, trabalha e sonha

Alentejo das casas de cal
Alentejo do sobo e do sal
Alentejo poejo, alecrim
Alentejo das terras sem fim

Ó terra morena deitada ao sol
Quero ser a alma do sobreiro
Estática, selvagem, dona da paisagem
Afrontadando o tempo a corpo inteiro
Rosa Lobato Faria

282 - Sonhos

Foto: Charquinho

Sonho Tropical
Num paraíso onde a sonhar vivi

Não tinha trono, mas eu era rei
Feliz ditoso por viver p'ra ti
Se era na terra, se no céu, não sei

Era uma ilha tropical, daquelas
Onde o amor tem um sabor diferente
Á beira mar, sob um lençol de estrelas
Numa cubata, tu e eu somente

Os dois ao luar num pedacito de tela
E as águas do mar calmas como a noite bela
Perto, os rouxinóis cantavam em serenata
E os teus olhos negros
Eram dois faróis riscando as águas de prata

Mas quando á noite a brisa é calma e quente
Leva o barquito, rumo de aventura
As nossas bocas num delírio ardente
Quase se esmagam, loucas de ternura

Ao acordar, como fiquei tristonho
E acredita, que senti saudade
Daquela ilha tropical de sonho
Que ás vezes sonho na realidade

António Vilar da Costa /
Casimiro Ramos