30 novembro, 2008

255 - Amor é Amor

Foto: Filha de Tubarão

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo
Amor é estado de graça.
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionário
se a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade

28 novembro, 2008

254 - Montanhas e valados

Foto: Charquinho

Bucólica

Montanhas e valados do Senhor
Aonde nascem peregrinas flores
E onde se debuxam várias cores
Num concerto de luz fascinador

Em vós tecem enredos mil amores
Os poetas ingenuos e os pastores
Quem em suas alegrias suas dores
Hão-de sempre a beleza eterna pôr

Almas ingenuas melodioamente
elevam maravilhas amorosas
Nas palavras que formam seus cantares

E todo o poeta que ali esteve sente
Que os cânticos de amor são como rosas
Eternamente perfumando os ares...
Jayme Azancot

253 - Nem Tarde, nem Noite

Foto: Charquinho

Metade

Chega a noite. E o dia não passou
Inda todo p'ra lá, compreendido
Só metade das coisas faz sentido
E o resto é pouco, ou muito, ou não chegou.

O cerebro é pequeno, - ou desmedido,
Porque nada está lá como eu estou,
Há sempre alguma coisa que falhou
E é possivel até eu ter falido

A maior posse não existe.Pois
Não há desejo que não quebre em dois
Meu sonho que morre insatisfeito

E sendo isto uma volta sincopada
Sem mais outra certesa, sem mais nada
Pode-se lá saber o que é perfeito
Luiz Moita

25 novembro, 2008

252 - Trabalhadores

Foto: Charquinho

Os anõezinhos

Na padaria não faltava o pão,
embora o padeiro fosse um mandrião,
porque o padeiro e o moço ressonavam,
enquanto os anõezinhos trabalhavam:

uns carregavam sacos de farinha,
outros faziam pãozinho na cozinha.

Ricardo Alberty,

251 - Docinho gostooso

Foto: Charquinho

Bombom Bom

No recreio, eu ganhei um bombom.
Seu recheio era de amora.
Tinha um gosto tão bom,
que eu comeria a toda hora.

Seu gosto era delicioso,
parecia um manjar dos deuses.
Era envolvido num papel maravilhoso,
que eu admirei diversas vezes.

— Você me dá um bombom?
Só com um não vou me contentar,
pois o seu gosto é tão bom
e outro eu quero ganhar.

Bombom doce, doce bombom,
adoce a minha vida.
Traga-lhe tudo de bom,
torne-a doce de ser vivida.
Josete Maria Vichineski

250 - Noite de Amor


Noche de amor insomne
Noche arriba
los dos con luna llena,
yo me puse a llorar y tú reías.
Tu desdén era un dios, las penas mías
momentos y palomas en cadenas.
Noche abajo
los dos. Cristal de pena,
llorabas tú por hondas lejanías
sobre tu débil corazón de arena.
La aurora
nos unió sobre la cama,
las bocas puestas sobre el chorro helado
de una sangre sin fin que se derrama.
Y el sol
entró por el balcón cerrado
y el coral de la vida abrió su rama
mi corazón amortajado.
Garcia Lorca

23 novembro, 2008

249 - Ruinas

Foto: Charquinho

Ruinas

Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
Lembrança de teu rosto.”
de todo a noite,
Pelo espaço arrastando o manto escuro
Que a loura Vésper nos seus ombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas correram. No outro dia,
Quuando as vermelhas rosas do oriente
Ao já próximo sol a estrada ornavam
Das ruínas saíam lentamente
Duas pálidas sombras:

O Poeta da saudade
Machado de Assis, in 'Falenas'

21 novembro, 2008

248 - Madrugada

Foto: Charquinho





















No calor da madrugada

Quando chegar a madrugada
E o meu corpo em ti buscar o amor
Vou desenhar-me na tua pele
E antes que a manhã se revele
Sorverei o teu sabor
Seremos além de amantes
Comandados comandantes
A caça e o caçador

Quando chegar a madrugada
Vou salpicar de estrelas
Teu suor sobre o lençol
E em suave melodia

No encontro da noite com o dia
Serei a lua
E tu, o sol

09 novembro, 2008

247 - Linguagem poética

Foto: Charquinho

Passa-lhe ao lado a cidade

Passa-lhe ao lado a cidade
no contexto de uma realidade
que é só sua e de mais ninguém.

Não se sente mal
nem se sente bem,
não chora
mas não lhe dá para rir,
também dispensou
esse luxo que é sentir.

Abdicou da emoção
quando se percebeu incapaz
de lidar com as memórias
de tempos atrás.

E aprendeu que no futuro
de pouco lhe iriam valer,
essas lembranças
que fazem doer.

Cansou-se de enfrentar a reacção
desesperada
de cada pessoa amada
que tentava em vão
contrariar-lhe a decadência
e que depois ele sentia
como uma indecência
a sua presença perniciosa
nas vidas que lhe competia partilhar.

Um dia decidiu…

Quanto tempo não sabia,
que lhe restava e o que jazia
na masmorra fechada
num canto da sua mente anestesiada
à prova de emoções,
a alma afogada em alucinações…

Acreditava-se
com as rédeas da sua vida na mão,
independente,
mais livre
enquanto indigente
do que na pele controlada
por um papel a cumprir
numa vida tramada
para todos os que se deixavam arrastar
por uma maleita qualquer
que culmina no ensandecer…

Às vezes apetece-lhe sorrir,
mas descobre que é engano
quando o calor metropolitano
o lembra do frio interior
e é então que desliga o olhar,
pousado sem brilho
num ponto fixo da cidade
que lhe passa ao lado
enquanto rumina
em silêncio
a melhor solução
para a próxima refeição,
desatinado
por já nem conseguir lembrar-se
de como desenrascou a anterior.
"Charquinho"

07 novembro, 2008

246 - Canção antiga

Foto: Charquinho

O Meu cavalo

Montei meu cavalo
Que é meu companheiro
Em cada jornada
Que tinha galgado

em passa ligeiro
dez léguas de estrada.

Mas vamos ao resto
que às vezes casos
que dá alegria contá-los
passou por nós lesto
um grande automóvel
de trinta cavalos.

E o meu cavalinho
um pouco espantado
parou um instante
sem ver os cavalos
que iriam puxando
um carro tão lindo.

Mas ai numa curva
de estrada comprida
ao pé dum silvado
aquele automóvel
de tanta corrida
ficou empanado

E o meu cavalinho
pinchava imponente
de cauda aos estalos
a rir-se contente
daquele automóvel
de trinta cavalos!

06 novembro, 2008

245 - Pública ou Privada ?

Foto: Charquinho - julho 13, 2005

A Coisa Pública e a Privada

Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.
Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?
O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?
— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

Affonso Romano de Sant'Anna

244 - Mudanças...

Foto: Charquinho

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
Bertold Brecht

243 - Curvas e contracurvas

Foto: Charquinho
Pinta-me a curva

Pinta-me a curva destes céus ... Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.

Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraíba, em torvelins de espuma.

Pinta; mas vê de que maneira pintas ...
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrínio das alegres tintas:

— Tristeza sir-gular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos dágua ...
Olavo Bilac

05 novembro, 2008

242 - A Ponte (amor de betão)

Foto: Shark

Talvez sonhasse, quando a vi

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a...Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando ...
Olavo Bilac

241 - Motociclista

Foto: Charquinho

MOTOCANDO
Loucura ou aventura,
pense lá o que quizer ...
Vão pela estrada, de moto,
o marido e a mulher.

Sensação de liberdade,
os pensamentos voando...
Fazem curvas, cortam retas,
seus destinos vão buscando.

À frente, se descortinam
céu e terra aos olhos seus,
mostrando toda beleza
da imensa obra de Deus.

A natureza desnuda:
campos, vales, serras, matas.
E o sol, dourando a folhagem,
dá luz e vida á paisagem.

O sol também nos aquece
do forte vento que vem
e esse contato mono
e de frescor nos faz bem.

E lá vão os dois rodando,
pensativos e silenciosos,
querendo reter na vida
momentos tão preciosos.

Tudo passa.... a paisagem
Que encantou e fica para trás.
Assim a vida é viagem:
o que foi não volta mais.
Maria Célia Cavalcanti Gonçalves

240 - Torre sineira

Foto: Charquinho

O Sino da minha Aldeia

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa

239 - Viagens

Foto: Charquinho

Carne dos meus pensamentos

Não conhecer teu corpo
mas sabê-lo possível
passível a viagens
que não as minhas.
Como te dizer por exemplo:
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
e a comida que acaso desejares
e algum poema que ilumine os ares...
se me olhas
simplesmente desinteressada
e num gesto muito teu
tiras da sacola Peg Pag
uma maçã dourada
que mordes
de estalo
e que deixa
entre os lábios e os dentes
um espaço de desejo
preenchido vorazmente
pela fruta
não pelo meu beijo?
Neide Archanjo

238 - Máquina do Tempo

Foto: Charquinho

Máquina do Tempo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
António Gedeão